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Campos dos Goytacazes, Sexta, 29 de Março de 2024

“O acesso à justiça e os poderes instrutórios do juiz no processo civil contemporâneo”.

09/06/2008
Por Dr. Lauro Magalhães Pereira Carneiro


Resumo: Este artigo jurídico tem por temática o acesso à justiça e a efetividade do processo advinda de uma participação mais ativa do juiz no que se refere à instrução da causa objetivando a busca pela verdade real. Aborda-se, igualmente, a necessidade de uma necessária intervenção judicial com vias a estabelecer a mantença da igualdade entre as partes, não deixando de se apresentar entendimentos doutrinário-jurisprudenciais pátrios relativos ao assunto. 

Sumário: 1 - Introdução; 2 - Desenvolvimento; 2.1 - O princípio da inafastabilidade do acesso à justiça; 2.2 - Juiz instrutor: atuação consistente na busca pela verdade real; 2.2.1 - O papel do juiz no Estado liberal; 2.2.2 - O papel do juiz no Estado social; 2.2.3 - O papel desempenhado pelo juiz na instrução da causa; 3 - Considerações finais; Referências.

1. INTRODUÇÃO

O acesso à justiça, enquanto direito egarantia fundamental do indivíduo consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nem sempre é materialmente alcançado, na medida em que o instrumento para o pleno acesso, conjugado a uma postura passiva e inerte do magistrado, acabam por obstaculizar, na maioria dos casos, uma tutela correlata à pretensão.

Não há como negar, igualmente, a existência de uma desigualdade entre as partes em litígio, fato este que, inexoravelmente, produzirá efeitos sobre o provimento final acaso não seja rechaçada, no caso concreto, pelo magistrado. 

É preocupação constante dos processualistas modernos, a busca pela efetividade do processo e, consequentemente, da prestação jurisdicional. Dessa forma, o objetivo deste artigo não é outro senão aquele tendente a demonstrar, após pesquisa, que de nada vale a garantia da inafastabilidade do acesso à justiça, prevista no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República de 1988, se o magistrado, condutor formal e material do processo, não envidar esforços necessários para alcançar a verdade real, pressuposto lógico da efetividade e adequação do provimento final. 

Sob tal prisma, pergunta-se: Como pode o juiz garantir a efetividade do processo, conferindo, igualmente, às partes, uma tutela jurisdicional adequada à natureza de suas pretensões?

A resposta a tal indagação é de suma importância, principalmente porque hoje se tem, como maior escopo da prestação da tutela ao jurisdicionado, a sua adequação e efetividade.

Tudo isso a partir de uma metodologia focada em pesquisas bibliográficas relevantes, doutrinas, jurisprudências e artigos sobre o tema em análise.

 

2. DESENVOLVIMENTO

2. 1 - O princípio da inafastabilidade do acesso à justiça  

Como bem anotaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a expressão “acesso à justiça” serve para determinar os dois fins básicos do sistema jurídico – aquele pelo qual as pessoas podem vindicar seus direitos e/ou resolver suas controvérsias sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema há de ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deverá produzir resultados que sejam individual e socialmente justos, justamente porque somente dessa forma, a justiça social, tal como desejada pela sociedade contemporânea, será alcançada, na medida em que pressupõe o acesso efetivo. [1]

O princípio em comento remonta, na história constitucional pátria, à Constituição da República de 1946, que foi a primeira a, expressamente, declarar que “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. [2]

Com o advento da Constituição da República do Brasil de 1988 o acesso ao Poder Judiciário, inserto no artigo 5º, inciso XXXV, é irrestrito, tendo em vista que esse preceito de cabal e lapidar importância consagra que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Isso quer, pois, dizer, que todos têm acesso à justiça a fim de postular tutela jurisdicional reparatória ou de natureza preventiva relativamente a um direito[3] que se mostra violado ou passível de violação, respectivamente. Estão, portanto, aqui contemplados, não só os direitos individuais, como os de natureza meta-individual (difuso, coletivo e individual homogêneo).

Em passado recente, o Brasil foi palco de episódio que envergonhou o direito pátrio, na medida em que restou proibido o acesso à justiça. Trata-se da edição do Ato Institucional nº. 5 de 13.12.1968, outorgado pelo Presidente da República, estabelecendo a seguinte regra em seu artigo 11: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os seus respectivos efeitos”. [4]   

Restou-se, pois, evidente, a violação deste AI nº. 5 ao artigo 150, § 4º da Constituição da República de 1967, cuja redação foi dada pela EC nº. 1/69. Todavia, em virtude de tal emenda, o AI nº. 5 foi formalmente incorporado à Constituição de 1967, o que, por si só, não teve o condão de afastar a sua inconstitucionalidade, a uma, porque outorgada por quem não detinha a competência para alterar o texto constitucional; a duas, porque estava em desacordo com normas constitucionais de grau superior (direitos e garantias individuais) e infringiam direito supralegal inserto no texto constitucional (direito de ação). [5]

Cessado que restou o período de exceção do Estado de Direito, o país voltou à normalidade institucional com a promulgação da Constituição da República de 1988 que, conforme indigitado, não mais permite qualquer tipo de ofensa à garantia do direito de ação.

Esse princípio, também denominado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação, é pilar fundamental do Estado de Direito, no sentido de que impõe a existência de uma proteção jurídico-judiciária sem lacunas[6] por parte do Estado.  

Conseqüência direta desse princípio foi a extinção da chamada instância administrativa forçada, ou jurisdição condicionada, por meio da qual se impunha ao particular, que pretendesse discutir com a Administração, a necessidade de recorrer, primeiramente, às vias administrativas e, somente uma vez esgotado esse meio, lançar-se às vias judiciais. O prévio esgotamento da via administrativa subsumia-se em verdadeira condição de procedibilidade[7] da ação civil, que, se não atendida, ensejaria a extinção do processo sem resolução de mérito por falta de interesse de agir (artigo 267, inciso VI, do CPC). Isso foi possível em virtude do artigo 153, § 4º, segunda parte, da Constituição da República de 1969, com redação dada pela EC nº. 7/77. [8]

A Constituição da República de 1988 não repetiu a ressalva contida no texto revogado, de modo que não mais há falar-se, no sistema constitucional brasileiro vigente, em jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado. Atualmente, apenas quanto às ações relativas à disciplina e às competições desportivas é que o texto constitucional exige, na forma da lei, o esgotamento das instâncias da justiça desportiva (artigo 217, § 1º, da CRFB). [9]   

Vale ressaltar, que o acesso à justiça, no ordenamento jurídico pátrio, trata-se, verdadeiramente, de um direito e uma garantia individual, traduzindo-se em verdadeira cláusula pétrea, o que faz com que jamais seja abolido da ordem constitucional então vigente (artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República de 1988).

O acesso à justiça, pode, portanto, ser considerado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos. [10]

Desde que o Estado, proibindo a autotutela, reclamou para si o uso da força, assumiu o dever de assegurar, sempre, uma prestação jurisdicional. Desse modo, o princípio em comento, tem por finalidade básica garantir a todos o exercício do direito de ação, ou seja, o direito de provocar o Judiciário a fim de que ele preste a sua jurisdição. Ação e jurisdição são, por isso, institutos que nasceram um para o outro.

Caracteriza-se o direito de ação por ser um direito público, subjetivo, abstrato, autônomo e instrumentalmente conexo à pretensão de direito material, exercitável até mesmo em face do Estado, que não poderá recusar-se a prestar a tutela jurisdicional. É o direito à decisão judicial tout court[11], seja ela de acolhimento ou rejeição do pedido, desde que preenchidos os pressupostos processuais e suas condições[12], visando à aplicação da norma e à conseqüente solução da pendenga.

No entanto, não basta a tutela pura e simplesmente; requer-se um provimento efetivo, adequado e, sobretudo, prestado em tempo hábil, justamente porque, na atual conjuntura em que vive a Ciência Jurídica, o acesso puramente formal, materializado na singela possibilidade de propor ou contestar uma ação, não mais se admite, tendo em vista que esse acesso não tem mesmo o condão de salvaguardar, materialmente, direitos que se mostram lesionados ou em vias de sê-lo. Isto é, o acesso puramente formal, mas não efetivo à justiça, corresponde a uma igualdade também formal e não efetiva. [13]

Assim sendo, necessário se faz a atuação positiva do Estado (e, principalmente, do Estado-juiz), no sentido de fazer valer essa garantia no caso concreto a partir das minúcias apresentas pelas partes com o estrito fim de assegurar a proteção de um dado direito subjetivo.

2.2 - Juiz instrutor: atuação consistente na busca pela verdade real

2.2.1 - O papel do juiz no Estado liberal

Com a decadência do Regime Absolutista a que se somam os ideais burgueses consagrados após a Revolução Francesa, nasce um Estado cuja função única é proteger e guardar a liberdade individual, sendo, por isso, também denominado Estado mínimo, ou seja, um Estado que é totalmente desprovido de um fim que lhe seja próprio, preocupado, tão somente, em garantir aos seus cidadãos as devidas condições para que pudessem alcançar, com seus próprios méritos, seus objetivos individuais.

Às relações intersubjetivas, no que tange às avenças juridicamente entabuladas, aplicava-se, de modo absoluto, o princípio da autonomia da vontade. [14]

Essa garantia exacerbada da liberdade individual, refletiu, de certa forma, no modo em que o Estado exercia a sua função jurisdicional, transformando, assim, o Poder Judiciário num simples mantenedor de uma ordem espontânea, que lhe era totalmente exterior, justamente por não ser proveniente da regulamentação estatal. [15]  Surge, desse modo, a concepção privatista de processo, segundo a qual o processo nada mais é do que um instrumento pertencente às partes e destinado a propiciar-lhes a satisfação do direito material através da necessária proteção do Estado. 

Assim sendo, o papel do juiz no Estado liberal clássico, resumia-se a de um mero espectador passivo e indiferente às possíveis desigualdades sociais existentes, bem como um sujeito neutro aos interesses individuais em jogo.

De cabal e lapidar importância foi a afirmação feita por Montesquieu ao tratar da função desempenhada pelos juízes no Estado liberal clássico, ao aduzir que “os juízes da nação são, apenas, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados, que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor”. [16]

Constata-se, pois, que as ideologias do liberalismo influenciaram não só o papel desempenhado pelo juiz no processo, como o próprio modo de ser do processo, que, inclusive, passou a adotar o princípio dispositivo, tornando-se, por conta disso, um mero instrumento de atuação dos interesses particulares dos litigantes. [17]

2.2.2 - O papel do juiz no Estado social

Com o posterior desgaste das ideologias apregoadas pelo Estado liberal clássico em decorrência dos excessivos abusos da liberdade pelos particulares e da acentuação das desigualdades sociais, o Estado passa a adotar um novo perfil, nascendo, a partir de então, uma nova forma de relacionamento entre a política e a economia. [18]

Surge, assim, o denominado Estado social, de caráter eminentemente intervencionista e ativo, com o intuito de realizar a tutela das relações econômicas e de regulamentar as atividades privadas, visando à proteção do bem-estar social. [19]

Do ponto de vista funcional, as intervenções do Estado, visando a dirigir aspectos da vida sócio-econômica mudam a função do Direito, que, a partir desse momento, deixa de ser instrumento de garantia do desenvolvimento espontâneo do jogo social para transformar-se em instrumento de mudanças econômicas e sociais. [20]  

Desse modo, com a conseqüente mudança no perfil do Estado e na própria função do Direito, o papel desempenhado pelo Poder Judiciário, mais especificamente, o papel do juiz, no processo, também assume nova e importante feição. E, assim, o juiz passivo, neutro, indiferente aos problemas de desigualdades sociais produzidos, principalmente, pelas ideologias do liberalismo individual, transforma-se num juiz ativo, consciente do seu novo papel de nivelador das desigualdades inter-partes. Emerge, pois, com o Estado social, a questão da justiça social. [21]

Vale, pois, ressaltar, que o papel do juiz na condução do processo, no Estado de cunho social, é muito mais amplo do que o de simples garantidor de uma ordem social espontânea. [22] Portanto, aquele juiz inerte e escravo da lei, proibido de intervir na esfera privada, passa a deter um maior poder-dever na direção do processo, visando, agora, atender aos fins socialmente desejados pelo Estado[23], proibido de quedar-se inerte no que se refere à prestação da tutela ao jurisdicionado, até porque, a partir de então, sua função passa a ser de agente integrador do sistema. [24] 

Certo é que essa ampliação dos poderes-deveres conferidos ao juiz coaduna-se com a tendência publicista que vem sendo atribuída ao Processo Civil moderno, no qual deve prevalecer a busca pela verdade material, ao invés de contentar-se tão somente com a verdade formalmente colacionada aos autos.

Tal tendência assumida pela ciência processual confere ao juiz uma importância jamais vista, justamente por tornar-se um sujeito do processo comprometido com a realização da verdadeira justiça social.

Dessarte, para que os objetivos a que visa o processo possam ser efetivamente alcançados, necessário mesmo se faz uma ampliação dos poderes instrutórios do juiz, tendo em vista a busca de uma igualdade material entre as partes, vez não ser permissível ao magistrado assistir, de modo inerte, à vitória do “mais forte”.

2.2.3 - O papel desempenhado pelo juiz na instrução da causa

Desde o reconhecimento da autonomia científica do Direito Processual Civil, o processo foi, cada vez mais, sendo considerado um instrumento de realização do poder soberano do Estado, surgindo, a partir daí, a sua concepção publicista. [25]

Do fenômeno da publicização e da preocupação cada vez maior, tanto dos doutrinadores como dos legisladores, de se atribuir uma função social ao processo, decorreu uma tendência universal de ampliação dos poderes do juiz, justamente porque ele se transformara no diretor formal e material do processo, conduzindo-o, sempre, em busca da paz social, valor altamente prestigiado pelo Estado social intervencionista.

Em decorrência desse novo enfoque assumido pelo processo, o juiz, figura passiva e inerte no processo de cunho privatístico, torna-se a figura mais importante no processo moderno, cabendo, igualmente a ele, o poder-dever de pacificar os interesses das partes em conflito adequadamente ao que propõe o Estado social.

Preleciona Sérgio Alves Gomes que a publicização do processo foi responsável “pela concessão de maiores poderes ao juiz na direção do processo, incluindo, nestes, o de determinar a produção de provas, ainda que não requeridas pelas partes, quando necessário for para o conhecimento da verdade e a realização da justiça”. [26]

Nesse mesmo sentido, é o que defendem Cintra, Grinover e Dinamarco, ao afirmarem a real necessidade de uma gradativa concessão de poderes ao juiz, justamente porque o processo, há longo tempo, deixou de ser considerado negócio entabulado entre as partes. [27]

A doutrina processualista tradicional sempre vinculou o processo penal à busca da verdade real, vigorando, assim, o princípio da livre investigação das provas. No que se refere ao processo civil, vigoraria, predominantemente, o princípio dispositivo, satisfazendo-se o juiz com a mera busca da verdade formal, por limitar-se à função de mero espectador. [28]

Em virtude desse princípio, toda a iniciativa, seja na instauração do processo, seja no seu impulso, compete tão somente às partes. Nesse sentido, as provas só poderiam mesmo ser por elas produzidas, jamais pelo juiz, que deve permanecer inerte. [29]

Em que pese toda a controvérsia sobre o assunto, data maxima venia, esse entendimento clássico não mais se coaduna com o processo civil contemporâneo. Veja-se.

Moacyr Amaral Santos, representante dessa parte da doutrina eminentemente conservadora, vê, no princípio dispositivo, um obstáculo à ampliação dos poderes instrutórios do juiz, afirmando que, no direito brasileiro, só é lícito ao juiz determinar, ex officio, diligências instrutórias, nos casos em que ainda esteja em estado de perplexidade ou incerteza com relação à veracidade dos fatos cuja prova já tenha sido realizada pelas partes interessadas. [30]  Sustenta o predito autor que “O alargamento dos poderes instrutórios do juiz, no campo da prova, ofende o princípio da igualdade das partes e poderá até mesmo quebrar a imparcialidade com que deve exercer as funções jurisdicionais”. [31]

Ao tratar do indigitado princípio, José Roberto dos Santos Bedaque assevera que esse princípio diz respeito à relação de direito material e não à de direito processual, “o que constituiria um equívoco afirmar, por exemplo, que a impossibilidade de o juiz dar início ao processo é conseqüência do caráter disponível da relação material”, uma vez que persiste o princípio da inércia da jurisdição ainda que indisponível o direito material. [32] 

Conclui-se, assim, que a denominação princípio dispositivo deve expressar, apenas e tão somente, as limitações impostas ao juiz em virtude da disponibilidade do direito e que são poucas, pois se referem aos atos processuais das partes voltados diretamente para o direito disponível. As demais restrições, quer no tocante ao início do processo, quer referentes à instrução da causa, não têm qualquer nexo com a relação de direito material; não decorrem, portanto, do chamado princípio dispositivo. Somente a adoção de um significado diverso para a expressão tornaria mesmo possível sua utilização para representar tais restrições.

Há alguns anos, já ensinava Calamandrei que, na realidade, enquanto para o exercício do direito de ação e para a concreta determinação do tema de demanda, todo poder de iniciativa reconhecido ao juiz seria mesmo incompatível com a natureza própria do direito privado, não se podendo dizer, igualmente, que o caráter disponível da relação substancial controvertida, leve, necessariamente, a fazer depender da iniciativa da parte a eleição e a posta em prática dos meios de prova. [33]

Se o interesse em conflito é privado, podem as partes renunciar à sua tutela, como também ao próprio direito. Daí a liberdade de provocar ou não a tutela jurisdicional. Mas, uma vez deduzida a pretensão em juízo, já existe outro interesse que deve prevalecer sobre o das partes, que é, inclusive, de natureza pública e consiste na preocupação da justa composição do litígio, de acordo com o direito substancial vigente e dentro do menor tempo possível. [34]

Igualmente não há falar-se em violação à imparcialidade do juiz em decorrência da ampliação de seus poderes instrutórios.

A preservação da imparcialidade do juiz, com efeito, exige sua permanência longe da iniciativa de instaurar o processo e definir o seu objeto, circunstância essa que ninguém põe em xeque. Somente às partes cabe, portanto, a iniciativa de colocar em juízo o conflito jurídico. No entanto, a investigação do direito subjetivo controvertido, tanto nas questões de direito quanto nas de fato, não pode ficar na dependência da exclusiva vontade e diligência das partes. Ademais, o juiz não se torna parcial apenas por se ocupar da apuração da verdade, diligenciando provas por iniciativa própria.

Ocorre que a imparcialidade do magistrado não significa a sua neutralidade diante dos valores a serem protegidos por meio do processo, uma vez que cabe a ele conduzi-lo, sempre, de modo a transformá-lo em efetivo instrumento para a obtenção de justiça. Consiste, pois, nisso, a imparcialidade do julgador. [35]

Não se deve confundir imparcialidade com passividade ou inércia, justamente porque o papel do juiz na condução do processo não pode ser reduzido ao de mero agente burocrático que observa, passivamente, a atuação ou inércia das partes, indiferente ao resultado a que visa o processo.

Aduz José Roberto dos Santos Bedaque que uma ampliação dos poderes instrutórios do juiz não significa quebra da sua imparcialidade, uma vez que a atividade probatória deste não tem mesmo o condão de favorecer esta ou aquela parte, já que, quando o juiz determina a realização de determinada prova, não tem condições de saber a quem ela poderia beneficiar. [36]

Acima de qualquer ônus probatório, há de prevalecer o compromisso com a verdade real e, por isso, o juiz não pode permanecer ausente em sua busca. [37]

Sustenta Fritz Baur que acima de qualquer coisa fica o juiz “autorizado e obrigado a apontar às partes as lacunas nas narrativas dos fatos e, em casos de necessidade, a colher de ofício as provas existentes”. [38] 

Conforme prelecionou Bedaque, “juiz imparcial é aquele que aplica a norma de direito material a fatos efetivamente verificados, sem que se deixe influenciar por outros fatores que não seus conhecimentos jurídicos”[39], e não aquele que deixa de produzir determinada prova que poderia elucidar, inclusive, a obscuridade de uma questão processual, apenas por medo de se tornar parcial. Essa não deve ser, com certeza, a postura de um julgador comprometido com a busca pela verdade real.

Quanto à impossibilidade do juiz determinar, de ofício, a produção de determinada prova, manifestou-se o Desembargador Relator do Agravo nº. 581.901-0, da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros, no sentido de que “Cabe à parte e não ao juiz escolher e produzir a prova que lhe interessar. É exceção a prova produzida pela própria iniciativa judicial, procedimento este que, usado com freqüência, poderá colocar em risco o princípio da neutralidade do julgado”. [40] 

Uma das possíveis soluções capazes de resolver o aparente choque entre a concessão de poderes instrutórios mais amplos ao juiz e a preservação de sua imparcialidade, seria mesmo a aplicação dos ensinamentos de Bedaque, no sentido de que bastaria, apenas, submeter a atividade instrutória do juiz ao princípio do contraditório e impor-lhe o dever de motivar as suas decisões a fim de ver-se assegurada a preservação do sobredito princípio, justamente porque “O perfeito funcionamento do princípio do contraditório é a maior arma contra o arbítrio do julgador”. [41]

Conforme supramencionado, vigorava no Estado liberal o princípio da autonomia da vontade, princípio esse que refletiu, diretamente, no modo de ser do processo civil, no qual se garantia, apenas, uma igualdade formal entre as partes. No entanto, com o advento do Estado social democrático, essa garantia meramente formal já não era mais suficiente, tendo em vista os novos fins a serem atingidos pelo processo.

É bem sabido que a desigualdade entre os litigantes é uma constante no processo civil, motivo pelo qual, cabe ao Estado-juiz a promoção da igualdade substancial das partes no processo, tranformando-o num instrumento de igualação (nivelação) das desigualdades sociais. Dessa maneira, admitindo-se que ao Estado-juiz caiba o suprimento das desigualdades para transformá-las em igualdade real, entende-se que a célebre eqüidistância do magistrado no processo deva ser adequadamente temperada, atribuindo-lhe poderes mais amplos, com o objetivo de estimular-se a efetiva participação das partes no contraditório, a fim de que, mediante uma real colaboração e cooperação das mesmas, se alcance um processo justo. [42]

Diante dessa situação de desigualdade social e econômica vivida pela maioria dos jurisdicionados, exige-se uma nova postura do juiz em face do processo. E, segundo Bedaque, um dos mais poderosos instrumentos de que dispõem os magistrados a fim de possibilitar a correção das desigualdades operantes na relação processual é, justamente, o reforço de seus poderes instrutórios. [43]

Corroborando a opinião do festejado autor, no sentido de que somente um comportamento mais ativo do juiz terá mesmo o condão de garantir a efetiva igualdade material entre as partes, José Renato Nalini aduz que, além de assegurar a igualdade das partes, a ampliação dos poderes instrutórios do juiz corresponde com o novo enfoque do processo civil, considerado instrumento público e oficial de realização da justiça. [44]

Avente-se, igualmente, que a liberdade das partes não é, de modo algum, afetada pela ingerência do juiz na atividade probatória, justamente porque se o direito debatido incluir-se no rol dos considerados disponíveis, permanecem elas com plenos poderes sobre a relação material, podendo, por isso mesmo, renunciar, desistir, transigir, etc. O certo é que, enquanto a solução para o caso permanecer nas mãos do Estado-juiz, não pode ele se contentar, apenas e tão somente, com a atividade das partes. A visão do Estado social democrático não admite essa posição passiva, conformista e, sobretudo, pautada por princípios essencialmente individualistas. [45]

No intuito de corroborar essa possibilidade do juiz determinar a produção de provas ex officio, a fim de se desvendar a verdade real e garantir a efetividade do processo e a adequada decisão ao caso em concreto, o Desembargador Relator da Apelação Cível nº. 195.004.197 da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, Ministro Rui Portanova, asseverou que o sistema brasileiro da prova, por força do artigo 131 do CPC, adotou o princípio inquisitivo, motivo pelo qual, em termos probatórios, o juiz é tanto ou mais interessado que a própria parte na busca pela verdade real e na justa composição do litígio. Nesse passo, o princípio do ônus da prova, encampado no artigo 333 do CPC, tem caráter supletivo, sendo, igualmente certo, que somente após a produção de todos os meios de prova conhecidos e possíveis pelo juiz e pelas partes é que concluirá o magistrado a quem competia provar tal ou qual fato. [46]

Ante o exposto, conclui-se que a concepção clássica sobre a figura do juiz no processo, como sujeito inerte e neutro, além de não corresponder à realidade, significa a negação da trilogia principiológica que garante o desenvolvimento do processo, qual seja, a instrumentalidade, a efetividade e a sua utilidade.

O ativismo judicial, como proposto, de um lado, põe em realce a instrumentalidade do processo, possibilitando ao juiz chegar à verdade real em vez de contentar-se com a verdade formal apenas, e, de outro, exorciza alguns mitos processuais, como a neutralidade do juiz e o quod non est actis non est in mundo.

O ativismo do magistrado encontra guarida no Código de Processo Civil do Brasil, mais especificamente em seu artigo 125, estabelecendo que o juiz dirigirá o processo conforme as disposições constantes no supramencionado diploma legal, competindo-lhe “I – assegurar às partes igualdade de tratamento; II – velar pela rápida solução do litígio; III – prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório à dignidade da justiça; IV- tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.”.

Assim sendo, constata-se que a neutralidade do juiz, antes do que um princípio, não passa de um mito que não encontra mais eco no moderno Direito Processual. O processo atual, ao contrário do que se pensa, é campo fértil ao ativismo judicial, enquanto atividade de um julgador atuante e consciente de que a administração da justiça não se compraz com a inércia do julgador.

Enfim, juiz ativo não é aquele que se preocupa com quem sairá vitorioso a final, mas sim aquele que pauta seu agir em busca de uma ordem jurídica justa, a fim de entregar o provimento (rectius, direito) a quem de direito. 

Somente assim, pode, pois, o magistrado garantir a efetividade do processo, tutelando, outrossim, de modo adequado, a pretensão subjetiva deduzida em juízo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabido e ressabido é que o indivíduo, enquanto ser integrante de uma determinada sociedade, não pode ficar à sua margem. Dela há de fazer parte, necessariamente.

Assim sendo, o sujeito que se vê preterido ou em vias de sê-lo em relação a um determinado direito, não pode ser impedido de fazer valer esse direito, mesmo em face do Estado em que se encontre e a que pertença.

Não se poderia, pois, pensar e, até mesmo, admitir, que o acesso à justiça pudesse ser negado. Tal direito encontra previsão em Texto Supremo, goza do status de direito e garantia fundamental e jamais poderá, por conta disso, ser aviltado por quem quer que seja. Exige, igualmente, imediatidade.

O processo, instrumento hábil para permitir o pleno acesso ao Poder Judiciário, deve apresentar-se, desse modo, como um sistema complexo e harmônico em todas as suas formas, de modo que seja dialético, conduzido por um juiz imbuído de alto valor ético e ativamente atuante no que se refere à sua instrução, pois, somente dessa maneira, o provimento final se legitimará.

Pensar de forma diversa, admitindo que o juiz se quede inerte e que deixe as partes à deriva, contando, apenas, com a própria sorte, é, mesmo, ir de encontro à Constituição da República de 1988, uma vez que, como sobredito, o acesso à justiça não se equivale a uma garantia meramente formal; pelo contrário, requer uma solução justa e adequada.

Deve, assim, o processo e todos aqueles que dele se utilizam, estar embasados pelos princípios da Justiça.

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