24/07/2020
Por DR. GERALDO DOS SANTOS MACHADO
Geraldo Machado (*)
Acabo de ler - em informativo - uma decisão prolatada em juízo singular que me causa espécie, de igual modo por que fico apreensivo quanto a desdobramentos de teorias de natureza ideológica que tendam a se sobrepor ao direito sistematizado.
Uma pessoa intentou uma ação contra uma instituição financeira, a que correspondeu o provimento judicial de indeferimento da peça exordial, ao argumento de que a parte não esgotou a via extra-judicial, daí o julgamento antecipado, sem julgamento de mérito.
Cuida-se, na espécie, de que qualquer cidadão, tendo postulação a se deduzir perante o Estado só pode fazê-lo após esgotada a via administrativa, instituída por Decreto e recentemente acolhida pelo CNJ como modo de prevenir litígios, em forma de possibilidade ofertada de conciliações...
Como forma de, segundo se propagou e se propaga, desobstruir os canais forenses, a permitir maior agilidade na prestação jurisdicional...
Transcrevo trecho do dito provimento :
“Cumpre anotar que as limitações orçamentárias impõem a cooperação de todos os agentes para que antes de recorrerem ao Poder Judiciário busquem as vias alternativas de composição de litígios, bem mais baratas, contribuindo assim para que as demandas judicializadas possam ser apreciadas dentro de um prazo razoável de duração, o que é benéfico a todos.”
Aqui a primeira “parada”, observação a ser feita, que entendo nada desimportante...
De que “cartola” tirou a digna e zelosa prolatora - que limitações orçamentárias impõem limitações a acesso ao Judiciário ou isso seja de algum modo legal estabelecido?
Dirá o cidadão comum, ao se defrontar com a espécie : “o que eu tenho a ver com isso” ?...
Em verdade, problemas de orçamento público nunca foram nem podem ser condicionante, como ali se pretende consagrar...
Eis que, na mesma trilha de “preservar” interesses públicos/estatais, assim pretende o julgado se justificar :
“Não é demais anotar que o princípio da cooperação é desdobramento do princípio da boa-fé processual, que consagrou a superação do modelo adversarial vigente no modelo do anterior CPC, impondo às partes a busca da solução integral, harmônica, pacífica e que melhor atenda aos interesses dos litigantes, competindo ao juiz velar para que seja de forma menos custosa ao Estado e, em última análise, aos próprios litigantes, pois contribuintes.”
O novo código processual civil nada tem de afrontoso a princípios e preceitos constitucionais ainda vigentes, daí se concluindo que nada há – a não ser uma exagerada preocupação (e diria mais que descabida de todo) preocupação com saúde fiscal, vendo nessa manifestação aqui reproduzida - exacerbação de cuidados que ao intérprete não é dado manifestar, muito menos a modo de vedar exercício de direitos derivados da própria cidadania...
Pois que esse alegado princípio de superação do modelo adversarial, prevalente no diploma anterior, não alcança, agora, de modo algum, óbice ao acesso da parte, que deve sim, ficar conforme a taxatividade de busca de solução amigável, o que é expressamente prevista no próprio corpo da legislação civil processual, em forma e tempo próprios, no entanto...
A introdução de mecanismos, pelo Estado Brasileiro, de busca de consensos, de perseguição de composição de litígios, em esfera extra-judicial, em nada interfere ou limita ou até veda o acesso direto à via judicial, posto que em nada colida com o ditame constitucional do artigo 5º :
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Se lei alguma pode limitar ou condicionar o exercício de busca de reparação judicial, muito menos ao intérprete isso será dado..,
Posta assim a questão, pode parecer mesmo, até – simplória a presente exposição, já que qualquer colega disso saiba bem e soe como pleonástica a preocupação agora posta – tanto que o dito provimento acima reproduzido pode e mesmo deve estar em vias de ser cassado através da via recursal.
O que, entretanto, assusta – e muito – é essa preocupação que chega mesmo a desbordar dos limites da mera e devida prestação,e a deixar à calva uma tendência de “cortar”, de “minimizar”, de “contingenciar” – gastos – estes entendidos como despesas que ao erário não se devam atribuir...
Numa – a meu modesto modo de ver – completa e abjeta subversão do conceito primário de ESTADO, que não representaria síntese de demandas da sociedade.
(*) advogado/defensor Público/ex Presidente da 12ª /ex Conselheiro da Seccional RJ