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Campos dos Goytacazes, Segunda, 07 de Outubro de 2024

As relações jurídicas transfronteiriças e a lacuna legislativa no Direito brasileiro

10/05/2023
Por *Tatiana Paixão Queiroz


O ser humano vive em uma rede e está cada vez mais conectado ao mundo, o que é um estímulo para levá-lo a lugares distantes, não só virtualmente, mas também fisicamente.

A globalização trouxe mais oportunidades de locomoção, e as pessoas têm vivenciado a oportunidade de conhecer diferentes países, onde estabelecem relações que podem refletir na esfera jurídica, como ocorre, por exemplo, com brasileiros que se casam e se divorciam de estrangeiros em outros países. Circunstância, ainda, em que uma ação de cobrança é ajuizada no exterior, e o devedor, no entanto, só possui bens a serem penhorados no Brasil. Ou, ainda, qualquer outro caso em que seja necessária a realização de diligências fora do território onde tramita um processo, para resolver questões de caráter jurídico, social, cultural ou econômico.

Os interesses transnacionais crescem à medida que o tráfego de pessoas ultrapassa fronteiras. A professora Nádia Araújo[1], em sua doutrina de Direito Internacional Privado, corrobora com esse entendimento e destaca que os Estados estão cada vez mais dependentes entre si, com o consequente aumento de inter-relacionamento de toda ordem, seja comercial, seja pessoal. Isso resulta em ações de cunho transnacional no poder Judiciário, com reflexo em mais de um país. A autora acrescenta que a necessidade de produção de atos em um Estado para cumprimento em outro é de fato uma tendência resultante da crescente internacionalização da economia.

Para que as relações transfronteiriças sejam efetivadas e produzam efeitos, dependem do sistema jurídico de outro Estado soberano, como forma de se estabelecer a segurança jurídica e a efetividade da justiça. O objeto dessa cooperação pode estar relacionado aos mais variados ramos do Direito: civil, penal, trabalhista, previdenciário, administrativo, processual, tributário, dentre outros.

Dessa forma, a globalização e o processo dinâmico da economia, assim como a constante movimentação de pessoas atravessando fronteiras, são fatores que estimulam as relações jurídicas internacionais e reforçam a necessidade de cooperação entre os Estados.

A cooperação jurídica internacional, então, é um importante instrumento de integração jurisdicional entre Estados soberanos distintos com a ideia de complementaridade entre jurisdições, já que são transnacionais as relações sociais, objetos dos litígios. Com isso, a eficácia meramente interna das decisões judiciais, atualmente, é insuficiente para conferir efetividade à prestação da tutela jurisdicional, com leciona a professora Flávia Hill[2].

Considerando, portanto, que decisões proferidas por autoridades estrangeiras podem produzir efeitos em outros países, o fenômeno da cooperação ratifica a ideia de que um Estado poderá recepcionar a decisão proferida por outro, visando à efetiva prestação da tutela jurisdicional, seja para que uma decisão proferida em um país se torne reconhecida e executada por outro ou até mesmo para que uma simples diligência seja realizada alhures. No entanto, as normas jurídicas são limitadas pelo território de cada Estado por serem nacionais, e o direito de cada Estado pode variar na regulação desses fluxos além-fronteiras.

Acerca da ideia de integração entre os Estados, o professor Ricardo Perlingeiro[3] menciona que os Estados têm o dever de garantir liberdades negativas e positivas, protegendo ou punindo, sob o prisma do sistema internacional de direitos humanos. O Estado tem o dever de cooperar, quando a natureza desses deveres públicos reclamar que se ultrapassem as fronteiras nacionais.

De acordo com os apontamentos dos professores Perlingeiro e Flávia Hill, no âmbito do Direito Processual Internacional, atos que dificultam a cooperação confeririam um retrocesso ao próprio direito, bem como a perda de confiança no âmbito internacional, porque impossibilitaria o cumprimento de procedimentos administrativos, judiciais ou jurisdicionais em território alheio, além de ser um empecilho ao exercício da própria jurisdição.

No Brasil, a cooperação jurídica internacional fundamenta-se em tratados ou, na ausência destes, na reciprocidade entre os Estados, como prevê o artigo 26, caput e §1º do CPC/2015. Além disso, a Constituição Federal brasileira preconiza em seu artigo 4º, inciso IX, que a República reger-se-á nas suas relações internacionais pelo princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Dessa forma, visando à cultura de cooperação, o Brasil é signatário de tratados bilaterais e multilaterais. Dentre esses acordos, está a Convenção Pan-Americana de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante de 1928), que disciplina a carta rogatória e a extradição, além de outros tratados firmados nos mais diversos campos do Direito, como por exemplo, tratados internacionais de direitos humanos, visando à proteção da pessoa humana.

O esforço dispensado à celebração de tratados se baseia no fato de o Brasil estar aberto a cooperar com outros Estados no plano das relações internacionais.

Além de ser signatário de tratados, o Brasil figura na Conferência de Haia de Direito Internacional Privado e na Conferência Especializada Interamericana sobre Direito Internacional Privado da Organização dos Estados Americanos (OEA), ambos comprometidos com a celebração de contratos multilaterais visando à cooperação jurídica internacional. O Brasil já firmou, também, acordos com Estados, independentemente da convencionalidade, para que o pedido de cooperação seja fundado sob promessa de reciprocidade.

Com isso, é possível afirmar que o país assumiu o compromisso da cooperação internacional e atua, tanto como Estado requerente, solicitando a outros Estados a cooperação, quanto como Estado requerido, dispondo-se a colaborar com o estrangeiro.

Percebido o fenômeno da cooperação internacional como uma forma de garantir o acesso à justiça, indaga-se: Como operacionalizar o reconhecimento, em território nacional, de uma decisão proferida em outro Estado, a fim de promover a justiça transnacional, considerando o sistema processual brasileiro em vigor? As regras contidas no ordenamento jurídico brasileiro acerca de reconhecimento de decisões estrangeiras possibilitam a efetiva prestação da tutela jurisdicional na esfera transfronteiriça? Como assegurar o reconhecimento de decisões estrangeiras sem que sejam extrapolados os limites da soberania estatal?

As respostas para essas indagações estão nos mecanismos de cooperação jurídica internacional, sobretudo nos procedimentos utilizados para o reconhecimento de decisões estrangeiras.

Atualmente, no Brasil, não há uma lei específica que trate da cooperação internacional, embora o legislador tenha reservado um capítulo do atual Código de Processo Civil para tratar do tema. O CPC passou a disciplinar os procedimentos de homologação de decisão estrangeira e a concessão de exequatur à carta rogatória de maneira pormenorizada (art. 960 a 965), diferentemente do que previa o CPC de 1973, que disciplinava a homologação de sentença e a concessão de exequatur de forma muito contida.

Vale lembrar que, até 1878, o Brasil só reconhecia sentenças estrangeiras se houvesse tratado firmado com o Estado requerente. Atualmente, o reconhecimento está expressamente previsto no ordenamento jurídico e está sujeito aos limites constitucionais e processuais.

Ademais, a Constituição Federal é categórica e estabelece que apenas o Superior Tribunal de Justiça possui competência para homologar decisão estrangeira (art. 105, I, “i”), cabendo aos juízes federais executá-la (art. 109, X). Nota-se que há um ponto nevrálgico nessa atuação do STJ ao reconhecer decisões no âmbito dos litígios transnacionais, o que pode ser um empecilho para a celeridade processual e, consequentemente, para a efetividade da prestação da tutela jurisdicional, já que nesse Tribunal tramitam inúmeros processos.

Não se pretende, aqui, defender o fim do reconhecimento das decisões estrangeiras, mas sim refletir acerca de possíveis meios de se conciliar a proteção da soberania do Estado brasileiro com a cooperação internacional, ante a necessidade de um Direito Processual Transnacional mais efetivo.

Não se pode perder de vista que ainda há muito o que ser aprimorado na legislação brasileira perante o dinamismo da sociedade moderna.  A garantia do acesso à justiça é uma realidade e uma necessidade, e, no cenário transnacional, os Estados dependem de colaboração mais efetiva para que as respostas sejam concedidas aos jurisdicionados envolvidos em causas que ultrapassam os Estados, o que exige do legislador brasileiro a propositura de normas que viabilizem a efetividade da justiça, dentro de um cenário de crescentes relações transfronteiriças.

* Advogada. Conselheira da Comissão da Escola Superior de Advocacia (ESA) da 12.ª Subseção da OAB. Professora universitária. Mestre em Direito Público e Evolução Social.


[1] ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 3. ed. Atual e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 267.

[2] HILL, Flávia Pereira. A antecipação da tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 103-104.

[3] PERLINGEIRO, Ricardo. Cooperação Jurídica Internacional e Questões Processuais: Lições do Direito Administrativo e Ambiental. In: PERLINGEIRO, Ricardo; GHIO, Emilie (Orgs.). Princípios gerais da cooperação jurídica internacional: uma abordagem temática e comparativa. Niterói: Nupej-Uff, 2020, p. 55.


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