20/09/2018
Por Luiz Eduardo Ribeiro Mourão
Por Luiz Eduardo Ribeiro Mourão
1. Colocação do tema
O novo Código de Processo Civil realizou notáveis avanços ao disciplinar o instituto da coisa julgada. O mais importante deles, sob o nosso ponto de vista, foi a identificação de quatro espécies de coisa julgada.
A possibilidade dessa classificação tem como fundamento a existência de quatro situações jurídicas distintas, perfeitamente identificáveis na nova lei processual, que possuem as características essenciais da res iudicata, mas se diferenciam em razão do conteúdo da decisão judicial que se tornará imutável e indiscutível (genus proximum et differentia specifica).
Assim, tendo como critério o conteúdo da decisão judicial sobre o qual incidirá a autoridade da coisa julgada, podemos classificá-la, segundo o novo CPC, em: a) coisa julgada material (artigo 502 do CPC); b) coisa julgada formal (artigo 486, parágrafo 1º do CPC); c) coisa julgada sobre questão prejudicial (artigo 503, parágrafos 1º e 2º do CPC); e d) coisa julgada sobre tutela antecipada antecedente (artigo 304, parágrafo 5º do CPC).
2. Conceito e finalidade da coisa julgada
Uma das questões mais importantes sobre a coisa julgada é perceber que se trata de um instituto de natureza processual, cuja finalidade é proibir o Poder Judiciário, as partes e, eventualmente, terceiros de rediscutir o objeto do litígio. A proibição das partes está expressa no artigo 337, parágrafos 1º e 4º do CPC. A vedação ao Poder Judiciário consta na norma do artigo 502 do referido diploma processual, na medida em que a decisão judicial, sob a autoridade da coisa julgada, se torna imutável e indiscutível, não podendo ser revista em processo futuro. O caput do artigo 505 deixa clara essa ideia ao prescrever que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide” (grifos nossos).
Com base nos referidos dispositivos legais, temos conceituado a coisa julgada como uma “situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros (ou nas distintas fases dos processos sincréticos: conhecimento e execução)”[1].
O valor protegido pela coisa julgada é, sem sombra de dúvida, a segurança jurídica, um dos mais importantes princípios do Estado de Direito. Se, de um lado, a CF abre as portas do Poder Judiciário para a apreciação de toda lesão ou ameaça de lesão aos direitos subjetivos (artigo 5º inciso XXXV da CF), de outro lado proíbe, pelo instituto da coisa julgada, que essa atividade seja exercida em duplicidade (artigo 5º XXXVI da CF).
3. Coisa julgada material
A primeira espécie de coisa julgada é a material, porque o conteúdo da decisão judicial, que se torna imutável e indiscutível, é o próprio mérito.
O mérito é o objeto do processo, sua questão principal, que será apresentada pelas partes ao Estado-juiz para resolução. Na sua essência, é composto das “relações jurídicas afirmadas pelas partes, das quais se extraem os direitos e deveres subjetivos, com as respectivas pretensões e ações de direito material”[2]. Do ponto de vista constitucional, corresponde à “lesão ou ameaça a direitos”, que será levada à apreciação do Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV da CF).
De acordo com o artigo 4º e 6º do CPC, a resolução do mérito, de forma justa e em tempo razoável, é o objetivo técnico do processo. O mérito é delimitado pela atividade postulatória das partes e, nos termos do artigo 141 do CPC, a atividade jurisdicional deve respeitar esse limite, sob pena de proferir decisão ultra, extra ou intra petita.
O legislador declarou as hipóteses de decisão de mérito no artigo 487 do CPC, a saber: a) acolhimento ou rejeição do pedido formulado na ação/reconvenção (inciso I); b) decisão sobre prescrição ou decadência (inciso II); c) homologação de reconhecimento da procedência do pedido formulado na ação/reconvenção (inciso III, a); d) homologação de transação (inciso III, b); e e) homologação de renúncia à pretensão formulada na ação/reconvenção (inciso III, c). Todas essas decisões serão acobertadas pela coisa julgada material (artigo 502 do CPC)[3].
4. Coisa julgada formal
A segunda espécie de coisa julgada é a formal, que se identifica pelo fato de o conteúdo da decisão judicial, que se torna imutável e indiscutível, ser uma questão formal, em geral, relativa aos pressupostos processuais e/ou as condições da ação.
O fundamento legal desta nova situação jurídica é o artigo 486, parágrafo 1º do CPC. Segundo esse dispositivo legal, a parte não poderá repropor a mesma ação, sem a prévia “correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito”, se o conteúdo desta decisão se referir às seguintes hipóteses: a) litispendência; c) indeferimento da petição inicial; c) falta dos pressupostos processuais; d) ilegitimidade e falta de interesse processual; d) acolhimento da alegação de existência de convenção de arbitragem ou o quando o juízo arbitral reconhecer sua competência (rectius: jurisdição).
Essa proibição de repropositura da mesma ação decorre da autoridade da coisa julgada que, nesse caso, tornará imutável e indiscutível uma decisão cujo conteúdo não é o mérito, mas uma questão formal. Por exemplo: uma decisão que extingue o processo com base em litispendência, ou na inadequação da ação proposta, não poderá ser revista, por outro juiz, num novo processo, pois se tornou imutável e indiscutível após o trânsito em julgado. Essa situação denomina-se coisa julgada formal[4].
O novo CPC, inclusive, admite expressamente a interposição de ação rescisória visando à desconstituição da coisa julgada formal (artigo 966, parágrafo 2º, I, do CPC).
5. Coisa julgada sobre questão prejudicial
A terceira espécie de coisa julgada diz respeito à questão prejudicial. Esse tipo de questão se caracteriza pelo fato de seu julgamento, que precede logicamente a decisão da questão principal, influir necessariamente no conteúdo desta. Barbosa Moreira escreve que “a denominação de ‘prejudiciais’ a essa luz, será aplicável às questões de cuja solução depender necessariamente o teor da solução que se haja de dar a outras questões”[5].
Luiz Guilherme Marinoni nos fornece o seguinte exemplo: “Se na ação de alimentos decidiu-se, com força de coisa julgada, que A é filho de B, condenando-se B a pagar alimentos para A, não é possível que B proponha ação negatória para rediscutir a questão da paternidade em face de A”[6]. Nesse caso, a questão relativa à paternidade tem natureza prejudicial, na medida em que a concessão dos alimentos depende lógica e necessariamente do conteúdo da decisão da questão prejudicial, ou seja, o reconhecimento da paternidade.
Assim, de acordo com o artigo 503, parágrafo 1º e ss do CPC, a decisão que tenha por conteúdo questão prejudicial também se sujeitará à autoridade da coisa julgada, tornando-se imutável e indiscutível em processos futuros. Essa é uma grande novidade técnica na ordem processual.
6. Coisa julgada sobre tutela antecipada antecedente
A última e talvez mais controversa espécie de coisa julgada diz respeito às decisões que concedem a tutela antecipada antecedente e não são impugnadas pelo recurso de agravo de instrumento. Essas decisões continuam produzindo efeito, mesmo após a extinção do processo. Esse fenômeno se chama estabilização da tutela antecipada antecedente (artigo 304, caput e parágrafo 1º do CPC).
O novo CPC concedeu às partes o direito de rediscutir a tutela antecipada antecedente estabilizada. Para isso, precisam repropor a ação, nos termos do artigo 304, parágrafo 2º do CPC, “com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada”. Essa regra tem um efeito de calibração no sistema, que se justifica em razão do caráter excepcional desse procedimento, que tem natureza satisfativa, pois antecipa os efeitos de decisão sobre o mérito, mas se baseia em cognição fundada na probabilidade da existência do direito.
Contudo, esse direito de rever a tutela antecipada antecedente tem limite de tempo para ser exercido, a saber, “2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo” (artigo 304, parágrafo 5º do CPC). Esgotado esse prazo, surgirá uma nova situação jurídica, que se caracteriza pela proibição de repetição/reprodução do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o conteúdo da decisão que concedeu a tutela antecipada antecedente. Essa nova situação jurídica constitui uma nova espécie de coisa julgada, pois imutabiliza e torna indiscutível uma decisão cujo conteúdo é uma tutela antecipada antecedente.
Essa nova espécie de coisa julgada tem outra peculiaridade em relação às demais, na medida em que, enquanto a regra geral fixa o momento do surgimento da coisa julgada com o trânsito em julgado da decisão (artigo 502 do CPC), neste tipo de procedimento a res iudicata se formará após o término do prazo de dois anos para a propositura da ação judicial prevista no parágrafo 2º do artigo 304 do CPC.
Por fim, cumpre ressaltar que a parte inicial do parágrafo 6º, do artigo 304 do CPC, ao afirmar que “a decisão que concede a tutela antecipada não fará coisa julgada”, tem levado muitos estudiosos, equivocadamente, a negar a possibilidade de essa decisão tornar-se imutável e indiscutível. Essa conclusão é inadmissível, porque, com o término do prazo de dois anos para a propositura da ação prevista no artigo 304, parágrafo 2º, do CPC, a aludida tutela antecipada antecedente não poderá ser objeto de nova tutela jurisdicional. Destarte, o enunciado do referido texto legal deve ser interpretado de forma sistemática, para não contrariar a norma do parágrafo 5º do artigo 304 do CPC.
7. Conclusão
Concluímos, pois, que o novo Código de Processo Civil disciplinou quatro espécies de coisa julgada, que possuem como traço de identidade a proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, eventualmente, por terceiros), em processos futuros (e nas fases distintas dos processos sincréticos: conhecimento e execução), mas se diferenciam em razão do conteúdo da decisão judicial que se torna imutável e indiscutível. Essas situações jurídicas processuais podem ser assim denominadas: a) coisa julgada material (artigo 502 do CPC); b) coisa julgada formal (artigo 486, parágrafo 1º do CPC); c) coisa julgada sobre questão prejudicial (artigo 503, parágrafos 1º e 2º do CPC); e d) coisa julgada sobre tutela antecipada antecedente (artigo 304, parágrafo 5º do CPC).
[1] Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 29.
[2] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. As quatro espécies de coisa julgada no novo CPC, in RBDpro, vol. 101, p. 256.
[3] Deve-se ressaltar que as decisões meramente homologatórias não são desafiáveis por ação rescisória, mas pela ação anulatória, prevista no artigo 966, parágrafo 4º do CPC.
[4] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2006, Capítulo 4.
[5] Questões prejudiciais e coisa julgada, Borsoi: Rio de Janeiro, 1967, p. 29-30 (o itálico é nosso).
[6] Coisa julgada sobre questão, São Paulo: RT, 2018, p. 301.