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Por Luís Roberto Barroso
Por Luís Roberto Barroso
No Brasil, sempre houve cotas. Até muito recentemente eram de 100%, em favor dos brancos[1].
I. A consulta[2]
1. Trata-se de consulta formulada pelo Instituto Educafro Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, por intermédio do Frei David, acerca da constitucionalidade das políticas de cotas reservadas para o acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras. O estudo que se segue, desenvolvido de forma objetiva, pretende apresentar os fundamentos constitucionais mais relevantes para o equacionamento da matéria em caráter geral, com referências específicas aos dois modelos normalmente praticados: o de cotas raciais combinadas com critérios socioeconômicos e o de cotas puramente raciais. A questão encontra-se posta perante o Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 186 e do RE 597.285, ambos sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski[3].
2. Já se pode adiantar que a conclusão apurada é no sentido de ser válida a instituição de políticas de reserva de vagas nas universidades públicas desde que sejam observados critérios e percentuais razoáveis, aferidos a partir de dados empíricos. É o que se passa a demonstrar.
II. O direito fundamental à igualdade sob múltiplos pontos de observação
3. Como é de conhecimento corrente, as ações afirmativas em geral e a reserva de vagas para ingresso no ensino superior em particular são políticas públicas voltadas para a efetivação do direito à igualdade, em suas diferentes dimensões[4]. Curiosamente, os opositores desse tipo de medida costumam invocar precisamente o direito à igualdade e argumentos a ele conexos para justificar sua posição. Nada obstante isso e revelando a complexidade da matéria muitos dos críticos das ações afirmativas reconhecem como fato a existência de preconceito racial no Brasil, em maior ou menor proporção, e até mesmo os seus reflexos negativos sobre a formação dos estudantes e suas chances de acesso às posições sociais mais elevadas. Apenas não creem que esta seja uma política desejável e/ou compatível com a Constituição.
4. Esse tipo de dualidade é própria dos conceitos jurídicos de textura aberta, como a igualdade de todos, e revela um fenômeno relativamente comum na sociedade contemporânea complexa: a possibilidade de que um mesmo problema ou uma mesma situação sejam observados a partir de múltiplos pontos de vista. Sem prejuízo dessa constatação, o cenário descrito já fornece pelo menos uma conclusão relevante. No Brasil de hoje, não se discute a sério a existência de uma desigualdade material a ser corrigida; discute-se o meio adequado para enfrentá-la. No caso dos processos que serão objeto de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, o que se discute é ainda mais específico: a constitucionalidade da opção em favor das cotas, efetuada pelo legislador ou pelas próprias instituições de ensino superior no exercício de sua autonomia. Para avaliar a validade dessa opção política, é preciso tecer algumas considerações sobre o princípio da igualdade, ainda no plano teórico.
5. A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da igualdade e condena de forma expressa todas as formas de preconceito e discriminação. A menção a tais valores vem desde o preâmbulo da Carta, que enuncia o propósito de se constituir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O art. 3º renova a intenção e lhe confere inquestionável normatividade, enunciando serem objetivos fundamentais da República construir uma sociedade livre, justa e solidáriae promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O caput do art. 5º reafirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O constituinte incluiu, ainda, menções expressas de rejeição à discriminação contras as mulheres[5] e de condenação ao racismo essa última com especial intensidade[6] , além de determinar a punição de qualquer discriminação que atente contra os direitos fundamentais[7].
6. Tal conjunto normativo é explícito e inequívoco: a ordem constitucional não apenas rejeita todas as formas de preconceito e discriminação, mas também impõe ao Estado o dever de atuar positivamente no combate a esse tipo de desvio e na redução das desigualdades de fato[8]. Na terminologia que se tornou corrente, a Constituição protege tanto a igualdade formal quanto a igualdade material. Em tempos mais recentes, incorporou-se ao discurso constitucional também a ideia de igualdade como reconhecimento. Esses três conceitos operam em sinergia para realizar, de forma plena, a ideia de igual respeito e consideração.
7. A igualdade formal, que está na origem histórica liberal do princípio, impede a hierarquização entre pessoas, vedando a instituição de privilégios ou vantagens que não possam ser republicanamente justificadas. Todos os indivíduos são dotados de igual valor e dignidade. O Estado, portanto, deve agir de maneira impessoal, sem selecionar indevidamente a quem beneficiar ou prejudicar. A igualdade material, por sua vez, envolve aspectos mais complexos, uma vez que é associada à ideia de justiça distributiva e social: não basta equiparar as pessoas na lei ou perante a lei, sendo necessário equipará-las também perante a vida, ainda que minimamente[9]. A igualdade como reconhecimento destina-se a proteger o direito à diferença, os grupos vulneráveis e as minorias em geral, sejam raciais, religiosas ou de orientação sexual.
8. Por conta dessa tripla dimensão, seria simplista afirmar que toda e qualquer desequiparação entre indivíduos seria inválida. Pelo contrário, legislar nada mais é do que classificar e distinguir pessoas e fatos, com base nos mais variados critérios[10]. Aliás, a própria Constituição institui distinções com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional e nacionalidade, dentre outros. O que o princípio da isonomia impõe é que o fundamento da desequiparação seja razoável e o fim por ela visado seja legítimo[11].
9. No caso das políticas de reserva de vagas nas universidades públicas, o fundamento mais geral de proteção da igualdade costuma ser decomposto em três vertentes: (i) reparação histórica; (ii) justiça distributiva; (iii) promoção da diversidade[12]. É possível identificar uma interação recíproca entre tais elementos, o que não exclui sua autonomia. Nesse sentido, o fato de se ter concedido a determinados grupos tratamento iníquo em determinado período da história pode ser tomado como fundamento para que se conceda reparação no presente ou como explicação das desigualdades hoje verificadas, que justificam medidas de justiça distributiva. Essa segunda linha que se afigura menos problemática deixa de lado investigações pouco consistentes acerca da noção de culpa pessoal e enfoca no fato da desigualdade, que, levado a determinado nível, passa a exigir ou justificar a adoção de medidas corretivas[13].
10. Por fim, essa mesma desigualdade de fato produz uma subrepresentação de determinados segmentos nas posições de maior prestígio e visibilidade sociais, o que pode acabar perpetuando ou retroalimentando um estigma de inferioridade. De forma ainda mais concreta, é notório que a escolaridade e as perspectivas dos pais exercem um papel relevante na formação dos filhos. Nesse contexto, as ações afirmativas podem ser justificadas também como medidas de promoção da diversidade, destinando-se a abrir espaço para a ocupação de posições destacadas por parte de segmentos tradicionalmente excluídos e o consequente rompimento desse círculo vicioso[14]. Em contextos nos quais a desigualdade tenha se institucionalizado, a defesa da igualdade formal absoluta acaba se confundindo com a defesa do status quo e, por isso mesmo, dificilmente poderia ser compreendida como medida neutra, quer sob a perspectiva política, quer sob o ponto de vista moral.
11. Não é necessário concordar com todas essas vertentes ou mesmo com qualquer delas para admitir que possam constituir justificativa razoável para a decisão política de se instituir um sistema de cotas. Esse é um ponto que deve ser enfatizado: não se cogita, aqui, da imposição da reserva de vagas em universidades como providência obrigatória que pudesse ser extraída diretamente da Constituição. O que se discute nas ações submetidas ao crivo do STF é a validade desse tipo de política, determinada pelo Legislador ou pela administração universitária. Para tanto, basta verificar se há elementos empíricos e fundamentos que confirmem a existência da desigualdade e tornem a política aceitável. Como referido inicialmente, o fato da desigualdade e a importância de que ele seja combatido costumam ser reconhecidos até mesmo pelos críticos do sistema de cotas, de modo que não parece necessário enveredar por uma demonstração dessa circunstância. Em vez disso, será mais proveitoso analisar objetivamente os principais argumentos empregados para desqualificar a reserva de vagas em universidades como opção política legítima.
III. Os argumentos contrários à política de cotas
12. É possível identificar, no debate público e nas ações propostas perante o Supremo Tribunal Federal, três argumentos principais contra a validade da reserva de vagas em universidades: (i) inexistência de racismo no Brasil, onde as desigualdades teriam fundamento socioeconômico; (ii) impossibilidade de se identificar negros e pardos por meio de critérios objetivos, dada a miscigenação predominante na sociedade brasileira; (iii) violação ao princípio da proporcionalidade. Veja-se um comentário sobre cada um deles.
III.1. Inexistência de racismo no Brasil e predomínio das desigualdades socioeconômicas
13. Nesse ponto, os opositores do sistema de cotas retomam a ideia de que o Brasil seria uma democracia racial, de que haveria uma identidade nacional compartilhada pelos brasileiros em geral e que não seria definida a partir da cor da pele[15]. Em uma versão mais sofisticada, a democracia racial é tomada como mito, mas em sentido positivo, na medida em que funcionaria como uma espécie de ideal normativo compartilhado, capaz de impor freios sociais aos comportamentos ostensivamente discriminatórios. Com o respeito devido e merecido, ambas as formulações tratam a desigualdade com displicência.
14. Em primeiro lugar, sem qualquer pretensão de acirrar polêmicas, é preciso fazer um registro teórico: a tese de que inexistiria racismo no Brasil é uma visão relativamente superada e que chega a contrariar o senso comum. A Constituição de 1988 foi especialmente enfática no combate à discriminação racial justamente por ser essa uma realidade amplamente conhecida, ainda que muitas vezes permaneça velada sob a cultura brasileira do homem cordial[16]. São igualmente frequentes as notícias sobre ocorrências de racismo, em todas as esferas sociais. O fato de o racismo no Brasil não assumir a mesma proporção e não ter levado à mesma radicalização verificada em outros países não deve servir de pretexto para que a sua existência seja negada.
15. A segunda vertente identificada acima assume a existência de manifestações de preconceito, mas defende que o mito da democracia racial é benéfico e deve ser cultivado para que a realidade seja progressivamente aproximada dessa idealização[17]. Nesse ponto, mesmo sem negar as eventuais vantagens de uma cultura que rejeite o preconceito ostensivo, não parece muito consistente invocar deliberadamente um mito como impedimento a que se adotem medidas destinadas a tornar a realidade concreta mais justa para as pessoas que vivem o tempo presente[18]. Esse tipo de argumento, ainda que fosse aceitável, parece se situar naturalmente no domínio das avaliações de conveniência e oportunidade, não no plano das violações à ordem constitucional. O mesmo deve ser dito em relação ao argumento de que as ações afirmativas poderiam criar um Estado racializado e romper com a harmonia entre os diferentes grupos sociais isto é: a harmonia do status quo. Cerca de dez anos após o início desse tipo de política, a tese sequer parece encontrar suporte na realidade[19].
16. Em segundo lugar, e abandonando a discussão puramente ideológica e de conveniência política, é preciso verificar a consistência do argumento de que o preconceito racial teria sido absorvido pelas desigualdades socioeconômicas[20]. Por esse raciocínio, as cotas para negros e pardos adotariam um fator de desequiparação aleatório tendo em vista a realidade brasileira , e acabariam constituindo discriminação contra os brancos pobres e benefício indevido para a classe média negra. Nesse ponto, a primeira constatação que se impõe é a existência de um argumento forte em favor da constitucionalidade das cotas baseadas em critérios socioeconômicos. Em verdade, a maioria dos programas já implementados no Brasil adota também esse critério, ainda que em combinação com outros elementos, sendo essa uma opção política legítima.
17. Isso não significa, porém, que o legislador esteja proibido de adotar um critério racial, ainda que de forma exclusiva, sobretudo quando se admita que as ações afirmativas possam desempenhar, legitimamente, o papel de promover a diversidade. Com efeito, existem dados e estudos que atestam a existência de um preconceito relacionado à cor da pele e às origens sociais, o qual produz dificuldades adicionais para a inserção dos negros em determinadas esferas, tanto no nível prático[21] como no plano da autopercepção[22]. A existência de correntes que questionam a confiabilidade desses dados ou a interpretação que lhes é atribuída não desqualifica, a priori, a sua pertinência no debate público. Em uma democracia, todas as ideias devem ser passíveis de questionamento, mas disso não se extrai que o legislador só esteja autorizado a atuar com base em consensos absolutos. A prevalecer essa tese, poucas políticas públicas ficariam de pé.
III. 2. Impossibilidade de se identificar negros e pardos por meio de critérios objetivos, dada a miscigenação predominante na sociedade brasileira
18. Antes de ingressar propriamente no ponto, é preciso reiterar uma ressalva que se tornou corrente. Não existem raças humanas sob o ponto de vista genético. As diferenças que separam brancos e negros no aspecto do genótipo são insignificantes e puramente superficiais. Como é natural, essa descoberta significativa da ciência não acabou com o racismo enquanto fenômeno social; apenas serviu para deixar ainda mais claro o quanto essa forma de menosprezo ao outro é cruel, arbitrária e autointeressada. Essa questão já foi objeto de manifestação por parte do Supremo Tribunal Federal, que rejeitou a ideia de que a inexistência biológica de raças humanas teria tornado insubsistente o racismo e as demais formas de preconceito baseado no fenótipo ou em fatores correlatos[23]. Feita a observação, retome-se o ponto.
19. É fato que a definição de critérios objetivos para identificar os beneficiários de eventuais programas de cotas esbarra em dificuldades variadas. Dentre todas as opções, a que parece menos defensável é o exame do genótipo, uma vez que o preconceito no Brasil parece resultar, precipuamente, da percepção social, muito mais do que da origem genética. A partir desse ponto, porém, a eleição de determinado critério parece envolver avaliações de conveniência e oportunidade, sendo razoável que sejam levados em conta fatores inerentes à composição social e às percepções dominantes em cada localidade. O sistema da autodeclaração, que tem sido adotado com maior frequência no país, apresenta algumas vantagens, sobretudo no que concerne à simplificação dos procedimentos e ao fato de se privilegiar a autopercepção. Há, todavia, problemas associados a esse modelo. Em especial, o risco de oportunismo e idiossincrasia, que poderia levar ao parcial desvirtuamento da política pública. Por outro lado, o sistema de avaliação do fenótipo das características exteriores do organismo procura reduzir esse risco, mas abre um flanco relevante para as críticas de que seria excessivamente subjetivo e levaria o Estado a impor rótulos sociais.
20. Apesar das imperfeições de qualquer modelo real, não parece razoável invocar as dificuldades operacionais para invalidar a própria possibilidade de se adotar ações afirmativas. Em rigor, seria desalentador e até mesmo contraditório afirmar que a sociedade é capaz de constatar a desigualdade e produzir estatísticas detalhadas a respeito da matéria utilizadas por ambos os lados do debate , mas seria incapaz de criar critérios para lidar com o problema. Seria mais ou menos como espalhar clínicas de diagnóstico pelo país, mas abrir mão das tentativas de prevenção e cura. Adicionalmente, a dificuldade de classificar pessoas não é exclusiva desse domínio e nem por isso é invocada como argumento para a inércia estatal obrigatória. Critérios igualmente complexos como capacidade contributiva, hipossuficiência, culpabilidade, notório saber e especialização, dentre muitos outros, são empregados cotidianamente para diferenciar pessoas, tanto para reconhecer vantagens quanto para impor encargos e sanções.
21. Por motivos variados, a ordem jurídica reconhece a necessidade de se valer de tais critérios. O fato de não ser possível utilizar parâmetros inteiramente objetivos ou neutros atributos que poucas normas poderiam reivindicar não é razão suficiente para que o Poder Público seja proibido de adotar medidas para a proteção de bens jurídicos de especial relevância, inclusive direitos fundamentais. No caso específico das políticas de cotas, a experiência brasileira registra exemplos da adoção de ambos os critérios descritos e, a par de discrepâncias pontuais, não parece que haja uma percepção de que os sistemas seriam aleatórios ou incapazes de produzir o efeito a que se destinam.
III. 3. Violação ao princípio da razoabilidade/proporcionalidade
22. O terceiro conjunto de argumentos contrários à política de cotas que retoma parcialmente questões já analisadas envolve as alegações de que haveria violação ao princípio da razoabilidade/proporcionalidade. A investigação é pertinente e, em última instância, deverá ser feita a partir das características de cada modelo in concreto. O que se fará no presente tópico é analisar se a própria ideia da reserva de vagas nas universidades seria, em si mesma, irrazoável ou desproporcional.
23. Nesse sentido, convém iniciar pela seguinte consideração geral, destacada igualmente em parecer da Procuradoria Geral da República: as opções legislativas devem ser preservadas, a menos que seja possível identificar uma causa real de invalidade[24]. Em outras palavras, ao apreciar a constitucionalidade de determinada ação afirmativa, não caberá ao Poder Judiciário avaliar se essa seria a melhor forma de equacionar os interesses envolvidos, muito menos desprezar os dados empíricos em que haja se baseado a decisão política, quando dotados de consistência[25]. Vale dizer: as medidas restritivas devem ser apreciadas em si mesmas, e não comparadas ao modelo que o julgador considere ideal. Com efeito, ainda que se quisesse submeter as políticas de cotas a um escrutínio estrito por introduzirem um temperamento à igualdade formal , o papel da jurisdição constitucional nunca é o de exercer um juízo de mera conveniência política, substituindo-se aos agentes encarregados da decisão inicial. Em verdade, porém, a hipótese envolve o embate entre igualdade formal e igualdade material, ambas protegidas pela Constituição, de modo que qualquer preferência a priori seria, no mínimo, questionável.
24. Feita a ressalva, qualquer política de ação afirmativa deverá ser, em primeiro lugar, adequada para a promoção do objetivo a que se destina. Em segundo lugar, a medida deverá ser necessária, sendo considerada inválida nos casos em que seja possível identificar, objetivamente, a existência de uma alternativa igualmente adequada e manifestamente menos restritiva. Por fim, em terceiro lugar, a medida deverá ser proporcional, de modo que o benefício alcançado seja relevante a ponto de justificar a restrição produzida. Em qualquer caso, a restrição não poderá afetar o núcleo essencial dos direitos fundamentais envolvidos[26].
25. Quanto ao requisito da adequação, há fundamentos objetivos para se sustentar que a reserva de vagas é uma medida capaz de promover um incremento na justiça distributiva e na diversidade, contribuindo para superar estigmas que reservam aos negros o exercício de papeis sociais supostamente inferiores. Experiências bem sucedidas no Direito comparado reforçam essa conclusão. De forma sintomática, é comum que os opositores da política de cotas não se apeguem ao argumento de que elas seriam necessariamente ineficazes como instrumento de inclusão social, mas sim ao de que a falta de critérios objetivos criaria o risco de novas injustiças, sobretudo contra os brancos pobres. Essa linha de raciocínio, que se aplica unicamente às cotas por critério racial, foi objeto de refutação no tópico anterior.
26. No plano da necessidade, discute-se a existência de outras medidas igualmente eficazes e que importariam menor restrição para a igualdade formal. A questão remete à observação geral enunciada acima, acerca da necessidade de respeito às opções políticas que não sejam objetivamente excessivas. Nesse sentido, não se questiona a existência de outras medidas que podem contribuir para o mesmo objetivo, de que são exemplo as iniciativas para melhorar a qualidade do ensino público e as condições de vida das populações carentes, bem como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e outras formas de estímulo e ajuda específicos para esse contingente. Nada obstante a importância de tais medidas, não parece razoável proibir o Estado de criar, também, políticas públicas destinadas a lidar com o problema em caráter imediato e emergencial. Nesse particular, sem nenhuma intenção de aumentar ainda mais a temperatura da discussão, o argumento de que tais medidas seriam paliativas e poderiam até desestimular a busca de soluções estruturais parece recair em uma certa funcionalização das pessoas. Muitas gerações já pagaram essa conta.
27. Por fim, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito destina-se a verificar se há proporção aceitável entre as restrições e o nível de proteção a direitos que resultam de determinada medida. Nesse ponto, os críticos da política de cotas identificam a existência de restrição a diversos dispositivos constitucionais, com destaque para a igualdade em sua dimensão formal (art. 5º, caput e inciso I)[27] e o princípio de que o acesso aos níveis mais elevados de ensino se dê por mérito (art. 208, V)[28]. Ambos os fundamentos são inegavelmente relevantes e impõem limites aos critérios que podem ser adotados nas ações afirmativas. Em termos mais concretos, não seria legítimo abrir mão da avaliação de capacidade e preparo pessoal como critério principal para o acesso ao ensino superior. Sem prejuízo disso, a ordem constitucional contém inúmeros outros elementos que também devem ser levados em conta e podem justificar ações afirmativas, incluindo políticas de cotas em patamares razoáveis.
28. Merece destaque, em primeiro lugar, o próprio princípio da igualdade em sua dimensão material. Como referido, a Constituição impõe ao Estado que se empenhe positivamente na construção de uma sociedade justa e livre de preconceitos, em que todos sejam tratados com igual respeito e consideração. Nesse ponto, aliás, o preconceito racial e as desigualdades dele resultantes receberam especial atenção por parte do constituinte. Em segundo lugar, o princípio da dignidade humana exige que todas as pessoas recebam tratamento que lhes permita desenvolver sua personalidade e suas potencialidades. O status quo que exclui um enorme contingente de pessoas de determinadas posições sociais e, em alguns casos, da própria possibilidade de aspirar a elas não deve ser compreendido como um fato da vida, e sim como uma realidade imperfeita que justifica, em linha de princípio, a intervenção estatal.
29.Em terceiro lugar, o sistema de direitos fundamentais da Constituição de 1988 é claramente informado pelas ideias de solidariedade e fraternidade, associadas à percepção de que a proteção absoluta do indivíduo atomizado não é compatível com a sociedade complexa e, em muitos casos, nem mesmo com a proteção universal dos direitos individuais[29]. Essa lógica já se encontra amplamente reconhecida em domínios como a proteção ao meio ambiente, a assistência social e o direito previdenciário, em que se discute a prevalência de uma solidariedade intergeracional. Nesse mesmo contexto e cada vez com maior frequência, a política e o direito são chamados a regular a distribuição de bens escassos e encargos coletivos a partir de critérios que se cruzam e se superpõem: de órgãos para transplante à carga tributária. As vagas nas universidades não devem ser tratadas como um nicho imune a esse tipo de consideração mais abrangente, como se constituíssem um reino perdido de igualdade formal incondicionada.
30. A partir de todas essas considerações, é possível e necessário fazer uma reflexão acerca da interpretação que deve ser atribuída ao referido art. 208, V, da Constituição, segundo o qual o acesso aos níveis superiores de ensino e pesquisa deverá ser franqueado segundo as capacidades de cada um. Além de constatar que esse dispositivo constitucional não pode ser lido de forma isolada porque nenhum deles pode[30] , não se impõe como óbvia a leitura reducionista no sentido de se considerar que as capacidades individuais devam ser entendidas tão somente como capacidades imediatas ou já desenvolvidas. A bem da verdade, a própria avaliação das capacidades parece pressupor que tenha havido um mínimo de igualdade de chances, sob pena de o projeto constitucional converter-se em institucionalização da sorte e verdadeira reserva de vagas para os filhos do status quo[31]. Caso houvesse uma competição verdadeiramente justa desde o início, quantos cientistas e profissionais de referência poderiam se originar dos enormes contingentes populacionais que habitam as favelas brasileiras?
31.Isso não significa, evidentemente, que o sentido mais literal do art. 208, V possa ou deva ser desprezado, substituindo-se as avaliações convencionais por questionáveis testes de aptidão ou talento em tese. O ponto é muito mais restrito e limita-se à constatação de que esse dispositivo não pode ser tomado de forma isolada para impedir que, ao tratar do acesso às universidades, o Poder Público adote medidas que conciliem a lógica básica da igualdade formal que deve continuar sendo predominante com providências que busquem compensar a imensa desigualdade material existente no Brasil. A realidade brasileira atual e inúmeros elementos constitucionais conferem suporte a essa opção, caso venha a ser adotada pelo legislador ou mesmo pelas próprias instituições de ensino superior que gozem de autonomia universitária[32]. E as medidas que se orientem por essa linha deverão passar em um teste específico de razoabilidade/proporcionalidade, sobretudo no que concerne aos percentuais adotados.
IV. Conclusões
As pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza.
Boaventura de Souza Santos[33]
32. No mundo contemporâneo, a ideia de igualdade se realiza em três dimensões distintas. A igualdade formal veda desequiparações arbitrárias entre as pessoas e, geralmente, será satisfeita por prestações negativas, por um não fazer: não discriminar, não favorecer indevidamente. A igualdade material está ligada à justiça redistributiva, à oferta de iguais oportunidades a todas as pessoas e, como regra, será promovida mediante prestações positivas, como a oferta de educação, saúde e outras utilidades sociais essenciais. Por fim, a igualdade como reconhecimento está ligada ao respeito à diferença e à diversidade, aí incluída a proteção e promoção dos grupos vulneráveis, concretizando-se mediante ações afirmativas.
33. Políticas de cotas raciais, combinadas ou não com critérios socioeconômicos, podem ser legítimas quando fundadas em parâmetros razoáveis. Este é o caso dos modelos da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De fato, sem violar a igualdade formal isto é, sem discriminar arbitrariamente , as políticas adotadas promovem a igualdade material e a igualdade como reconhecimento. Seu caráter de ação afirmativa contribui para (i) a reparação de injustiças passadas, (ii) a redução do abismo sócio-cultural que separa os setores hegemônicos dos excluídos, (iii) o pluralismo e a diversidade, bem como (iv) o fortalecimento da autoestima de grupos subrepresentados em posições de prestígio e visibilidade social.