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Campos dos Goytacazes, Sexta, 26 de Abril de 2024

Arma de Fogo Desmuniciada: Crimes de Perigo Abstrato e o STF

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Por DAMASIO JESUS


 

A 1ª T. do Supremo Tribunal Federal (STF), no Habeas Corpus (HC) nº 96.072/RJ, julgado no dia 16 de março de 2010, por votação unânime, relator o Ministro Ricardo Lewandowski, publicado em 9 de abril no DJU, apreciando a infração do porte de arma de fogo desmuniciada, descrito no art. 14 da Lei nº 10.826/03, entendeu tratar-se de crime de perigo abstrato. Alterando posição amplamente divulgada, considerou irrelevantes as circunstâncias da eficácia da arma, se municiada ou não, e de encontrar-se à disposição do agente para pronto uso. Para a integração do delito, constou da ementa: para a caracterização do fato delituoso, "não importa o resultado concreto da ação". Votaram no mesmo sentido os Ministros Marco Aurélio, Ayres Brito, Cármen Lúcia e Dias Toffoli.

Verifica-se que o acórdão inicialmente citado e seus precedentes, além das contidas na ementa, trouxeram posições definidas sobre temas de real importância: 1ª – cuida-se de crime de perigo abstrato, razão genérica das orientações posteriores; 2ª – é irrelevante a eficácia da arma de fogo; 3ª – pouco importa que esteja sem munição; 4ª – não se exige perícia sobre sua potencialidade lesiva; 5ª – seu pronto uso não integra o tipo; 6ª – o simples porte de munição perfaz a figura típica. A decisão cita pronunciamentos anteriores da mesma Turma: HC nº 89.889/DF, relatora Ministra Cármen Lúcia; HC nº 99.582/RS, relator Ministro Carlos Brito; HC nº 96.922/RS e HC nº 90.197/DF, estes dois últimos relatados pelo Ministro Lewandowski.

Não se pretende, neste trabalho, abordar todos os itens apreciados no acórdão, mas somente o genérico, do qual derivam os outros: a questão do perigo abstrato em matéria penal.

É múltipla a objetividade jurídica dessas infrações. Há um objeto jurídico principal e imediato: a incolumidade pública. E existe a objetividade jurídica mediata e secundária, visando às normas proteger a vida, a incolumidade física e a saúde dos cidadãos. Na verdade, a segurança coletiva está a serviço dos interesses jurídicos referentes à vida, à integridade corporal etc. Isso não significa que se dá maior relevância à segurança pública, situando o direito à vida ou à saúde em plano secundário. Esses bens individuais se sobrepõem àquela. Ocorre que, protegendo-se o interesse coletivo, automaticamente está sendo conferida tutela aos bens particulares. A ratio legis reside exatamente nisto: para proteger direitos fundamentais do homem, como a vida, o legislador antecipa a punição a fatos que, de acordo com a experiência, conduzem à lesão de bens de valor supremo. Pretende a norma reduzir a criminalidade contra a pessoa e o patrimônio, crescente em face da facilidade de aquisição, porte etc. de armas de fogo. O legislador deseja prevenir a prática de homicídios, lesões corporais, roubos violentos etc. criando empecilhos à aquisição, produção e venda ilegais de armas e munições. A antecipação da punição, entretanto, não pode olvidar-se do princípio da ofensividade, de fonte constitucional. E este é ferido de morte pela aceitação dos crimes de perigo abstrato.

Nos delitos de perigo abstrato, este é presumido pelo legislador, não se permitindo prova contrária. Fere o princípio da legalidade, que faz depender o crime de lei que o define. E delito é, em princípio, um fato típico, que tem na conduta seu primeiro requisito. De modo que o sujeito responde pelo fato cometido, não podendo o legislador estender, mediante presunção, a responsabilidade à parte do tipo não concretizada. Significa que o autor não realiza o tipo por inteiro, uma vez que parte dele é presumida pelo legislador. Isso não está de acordo com o moderno Direito Penal, que se fundamenta na culpabilidade. No Brasil, a reforma penal de 1984 consagrou a culpabilidade como base da responsabilidade penal da pessoa, princípio incompatível com presunções legais. Além disso, a Constituição da República de 1988 instituiu o princípio do estado de inocência, que também não se harmoniza com a presunção legal do perigo.

A Constituição Federal, no art. 5º, caput, tutela o direito dos cidadãos à incolumidade pessoal; há, portanto, interesse coletivo de que as relações sociais se desenvolvam dentro de um nível de segurança. Toda vez que alguém fabrica, vende, porta etc. uma arma de fogo de maneira ilícita, atua fora do círculo de permissão estatal e rebaixa o nível de segurança física coletiva.

Há dois planos superpostos: A e B.

Plano A – condutas permitidas. Ex.: porte legal de arma de fogo. Não há infração penal quando o cidadão atua conforme o direito, ainda que sua conduta apresente o risco normal do uso da arma de fogo (risco permitido). Assim, há permissão legal da realização de comportamento que se situa, no plano vertical, entre os níveis A e B.

Plano B – crime: quando o comportamento do cidadão situa-se do limite B para baixo, há lesão ao interesse coletivo "incolumidade pública" (risco proibido), praticando delito (desde que o fato se enquadre nas disposições penais). Ele rebaixa o nível de segurança coletiva tutelado pela ordem jurídica.

A incolumidade pública não resulta, pois, da soma das garantias físicas individuais dos membros que compõem a coletividade. A locução se refere ao nível de segurança pública no que tange às relações sociais. Diz respeito ao estado (nível) de bem-estar físico da população no que respeita à circulação social. Realmente, o nível de segurança dos integrantes do corpo social é algo mais que a segurança física de cada um. Esse nível é garantido pela Constituição Federal e pela legislação ordinária. Cuida-se de interesse de relevante importância, uma vez que o cidadão, enquanto membro do corpo social, tem direito a um nível coletivo de segurança diferente da garantia. O infrator, nos delitos relacionados com armas de fogo, situando sua conduta abaixo do plano B, lesa a objetividade jurídica. Com o simples comportamento, reduzindo o nível de segurança, já pratica delito, pois lesa o interesse público de que não seja rebaixado. Não se exige que o fato ofenda bens jurídicos individuais, já que a objetividade jurídica pertence à coletividade. Esta, contudo, exige, para que exista crime, que venha a ser ofendida. Caso contrário, estaremos em face de crime impossível e da responsabilidade penal objetiva, na qual só é necessária a conduta para a punição.

A adoção do princípio adotado no acórdão levanta a questão em relação a outros delitos, citando alguns. Qual será o entendimento da 1ª T. do STF no tocante a outros fatos, como:

1. Arma de brinquedo será considerada arma?

2. Arma de brinquedo qualificará o roubo?

3. Portar um cartucho de arma de fogo inidôneo para disparo será crime mais grave do que o aborto consentido?

4. Os crimes contra o meio ambiente seriam também delitos de perigo abstrato?

5. A direção em estado de embriaguez, aceitando-se o perigo presumido, prescindirá do exame de teor alcoólico da substância ingerida pelo motorista?

6. Todos os crimes de perigo individual seriam de perigo abstrato?

7. O crime de sonegação fiscal passaria a ser de perigo abstrato, prescindindo-se do resultado danoso ao erário público?



Informações bibliográficas:
JESUS, Damásio de . Arma de Fogo Desmuniciada: Crimes de Perigo Abstrato e o STF. Editora Magister - Porto Alegre - RS. Publicado em: 05 jan. 2011. Disponível em:
<http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=900>. Acesso em: 05 jan. 2011.

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