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Campos dos Goytacazes, Quinta, 25 de Abril de 2024

Um Olhar sobre o Novo Código de Processo Civil (PLS 166/2010) na Perspectiva das Prerrogativas da Magistratura Nacional (Especialmente na Justiça do Trabalho)

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Por GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO


RESUMO: O presente artigo examina os termos do novo Código de Processo Civil, tal como encaminhado ao Congresso Nacional Brasileiro (PLS 166/10), na especial perspectiva das prerrogativas da Magistratura nacional. Conquanto reconheça a excelência global do projeto, notadamente no propósito de reformular o binômio processo/procedimento para engendrar uma técnica processual de feitio mais instrumental e dinâmico, aponta aspectos que reclamam reparos, seja pela inconstitucionalidade da norma proposta, seja pela sua inconveniência político-legislativa.

PALAVRAS-CHAVE: Novo Código de Processo Civil. PLS 166/10. Magistratura: prerrogativas. Estatuto da Magistratura.

I – O Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, à Guisa de Introdução. Aspectos Positivos

O anteprojeto do novo Código de Processo Civil, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato nº 379/09 da Presidência do Senado Federal e convolado no Projeto de Lei do Senado nº 166/10 (do Senador José Sarney) 1, nasce com o propósito primeiro de atender ao princípio do art. 5º, LXXVIII, da CRFB. Nas palavras do Min. Luiz Fux, presidente daquela comissão, "o cerne do novo CPC é o ideário da duração razoável dos processos". Para esse efeito, entre outras medidas, elimina-se a figura da ação cautelar como entidade autônoma (excluindo-se o atual Livro III e regulamentando-se difusamente a "tutela de urgência e tutela da evidência"), restringe-se ainda mais a utilização do agravo de instrumento e cria-se o "incidente de resolução de demandas repetitivas" (arts. 895 a 906). Por outro lado, perde-se grande oportunidade de adequar a norma-base do processo civil brasileiro ao novo paradigma digital, estabelecendo o diálogo com a Lei nº 11.419/06. A omissão, ao que parece, foi intencional, tendo em conta que a inclusão digital ainda não alcançou todo o Poder Judiciário, nem tampouco todos os quadros da advocacia.

De outra parte, o novo texto já nasce sob o pálio da crítica. Diz-se dele, por exemplo, ser de duvidosa necessidade, na medida em que simplesmente revisita, em variegadas matérias, o que hoje já dispõe o Código de Processo Civil de 1973 (cerca de 80% dos dispositivos do novo código – num total de 970 – reproduzem ipsis litteris os artigos do Código BUZAID). Sugere-se, por isso, que melhor seria prosseguir com a estratégia das minirreformas, hábil a produzir iguais efeitos de renovação, sem todavia impactar o meio forense com a revogação integral de um texto legislativo já consagrado e curtido nas caldeiras do tempo, pela obra da doutrina e da jurisprudência.

Mais pontualmente, certo segmento da doutrina tem apontado retrocessos em aspectos que dizem com a instrumentalidade do procedimento e com os poderes instrutórios do magistrado, pela perda de referenciais seguros e pela possível contradição com princípios constitucionais como os do contraditório e da ampla defesa. Recentemente, tal crítica exsurgiu bem condensada na pena de Costa Machado 2:

"E agora, para finalizar este pequeno e despretensioso artigo, elencamos as propostas que, a nosso ver, desqualificam o anteprojeto do CPC: 1) o poder atribuído ao juiz para ‘adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito’ (art. 107, V); ‘quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório e ampla defesa, promover o necessário ajuste’ (art. 151, § 1º); 2) a eliminação do efeito suspensivo da apelação (‘os recursos, salvo disposição legal em sentido diverso, não impedem a eficácia da decisão’- art. 908, caput); 3) o poder concedido ao relator para atribuir o efeito suspensivo à apelação (art. 908, §§ 1º e 2º); 4) a eliminação dos embargos infringentes; 5) fixação de nova verba advocatícia pela instância recursal quando o tribunal não admitir recursos ou negar provimento por unanimidade (arts. 73, § 6º e 922); 6)a previsão de que ‘os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem vinculados’ (art. 847, II); 7) a concessão generalizada de liminares sem exigência de periculum in mora quando ‘a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo autor a que o réu não oponha prova inequívoca’ (art. 285, III); 8) disciplina da multa cominatória sem estabelecimento de limite de tempo e de valor (art. 503 e parágrafos); 9) eliminação do direito da parte a um certo número de testemunhas; 10) o levantamento de dinheiro depositado a título de segurança do juízo pelo credor (art. 829)."

De se ver, pelo excerto, que muitas dessas críticas pontuais – que não têm foros de universalidade – dizem com aquilo que tende a representar justamente o maior sopro de novidade desse novo regramento: a subordinação do procedimento à necessidade do direito material3 (art. 107, V – a que equivale, por exemplo, o "princípio da adequação formal" art. 265-A do Código de Processo Civil português 4), caminhando para um conceito de justa jurisdição, i.e., de jurisdição como estrita função de tutela de direitos materiais 5. Para esse fim, incrementam-se os poderes diretivos e instrutórios do juiz (v., e.g., os arts. 151, § 1º, e 285, III, do anteprojeto), aproximando-se do chamado "modelo de Sttutgart" – e, por essa via, consubstanciando um importante passo qualitativo no sistema processual brasileiro, a romper com certa visão formalista, mecanicista e positivista do processo que ainda impregnava o próprio Código BUZAID.

Nesse plano, portanto, a Magistratura nacional ganha com a edição do novo Código de Processo Civil. Ganha em termos de instrumentalidade processual, em termos de ductibilidade procedimental e em termos de eticidade do discurso. E também ganha, por consequência, em matéria de prerrogativas, notadamente em relação àquelas que só se exercem no processo: a prerrogativa de dirigir o processo (arts. 125, 445 e 446 do atual CPC) e a prerrogativa de instruir e decidir a causa conforme o seu livre convencimento motivado (arts. 130 e 131 do atual CPC), o que é especialmente relevante em sede processual trabalhista, mercê dos amplos poderes de instrução historicamente acometidos aos juízes do Trabalho (art. 765 da CLT). Significa, em última análise, prestigiar a ação e a decisão em primeiro grau de jurisdição. São, pois, pontos do anteprojeto que devem ser preservados.

Por outro turno, o anteprojeto tenciona inovar, em alguns contextos, em posição de invadir indisfarçavelmente matérias privativas de lei complementar (art. 93, caput, da CRFB) e/ou em desacordo com o desiderato constitucional maior de incolumidade da independência judicial. Nisso, inova mal. Vejamos a seguir.

II – Introdução Crítica às Razões de Resistência. A Questão da Independência Judicial

Como é sabido, magistrados devem gozar de plena liberdade de convicção, para instruir e julgar, e de autonomia pessoal no exercício do mister jurisdicional. Sua liberdade de convicção não pode ser arrostada sequer pela instância superior (tanto que lhe é dado ressalvar o próprio entendimento, no 1º grau ou nos órgãos colegiados, ainda quando se curve ao entendimento dissidente). E, por conseguinte, não pode ser punido administrativamente pelas teses jurídicas que perfilhar ou externar, ainda que incomuns ou minoritárias. Não fosse assim, teríamos «não-juízes»: servidores autômatos que, em 1º grau de jurisdição, limitar-se-iam necessariamente a repetir as teses do 2º grau e a reproduzir as emendas das súmulas dos tribunais superiores. Essa certamente não seria uma Magistratura democrática. O que significa dizer, "a contrario sensu", que a liberdade de convicção e a autonomia pessoal dos magistrados, ambas radicadas na base axiológica das normas-regras constitucionalizadas no art. 95, I a III, da Constituição, perfazem verdadeira condição para um Estado Democrático de Direito.

É exatamente por conta dessa percepção que tanto se debate, no âmbito das associações de juízes, a impropriedade da expressão "hierarquia judiciária" – ainda muito comum nos regimentos internos dos tribunais – e da própria normativa a ela relacionada. Não convém confundir competências funcionais, como são aquelas exercidas pelos tribunais para a revisão das decisões de primeiro grau, com anteposição hierárquica, conceito admissível e até mesmo natural em algumas instituições (como, p.ex., nas Forças Armadas, a ponto de se excepcionar a regra da limitação das prisões aos casos de flagrante delito e mandado judicial – veja-se, e.g., o art. 5º, LXI, in fine, da CRFB), mas absolutamente impróprio para definir a natureza das relações entre juízes de 1º e 2º grau de jurisdição (ou entre esses e os juízes dos tribunais superiores). Não se discute, nos limites do sistema processual, o poder de revisão dos tribunais, imanente ao próprio "procedural due process of law" (art. 5º, LIV, da CRFB); nem tampouco o dever intraprocessual de respeito às decisões judiciais de grau superior, no plano jurídico-decisório (o que não significa, entenda-se bem, capitulação no plano jurídico-argumentativo); mas tudo isso nos limites subjetivo-objetivos do processo (ou toda súmula de jurisprudência seria necessariamente vinculativa). Nada mais que isso. O magistrado de 1º grau pode discordar das subsunções jurídicas e das razões de fato e de direito do "decisum" de 2º grau ou até mesmo das instâncias superiores; pode, por isso mesmo, ressalvar seus entendimentos; e, nos casos excepcionais, pode inclusive se escusar de julgar, por entender malferida a sua independência funcional, em razão do tipo de decisão a que terminou «confinado» em razão de decisões superiores (valendo-se, para tanto, do art. 135, parágrafo único, do CPC) 6. Apenas não pode rever intraprocessualmente o que foi decidido nas instâncias superiores, ainda que violentem o seu convencimento. Quanto ao mais, porém, não há hierarquias. Leia-se, por todos, em Nery de Oliveira:

"A tal modo, se resulta lógico que a administração centralizada nos Tribunais pressupõe uma obediência aos comandos de gestão e administração por tais Cortes enunciadas, logicamente tais atos administrativos não ensejam qualquer perda dos atributos de independência do juiz, notadamente na suaatividade-fim, mas também indiretamente qualquer ingerência que possa pretender vir a perturbar aquela, ainda que emanada de órgãos internos do Judiciário. Para que assim fosse, o art. 95 haveria de comportar exceções, e tais não existem para permitir que juízes de Cortes superiores sejam maiores que outros.

Na verdade, todos os juízes são iguais, mesmo aquele magistrado da comarca mais humilde e longínqua do País em relação ao ministro do Supremo Tribunal Federal – o que os distingue, basicamente, são as competências jurisdicionais distintas, que confere a uns e outros, em dados momentos, maior status social (e não pouco é lembrar que muitas vezes o juiz da comarca do interior, quase esquecida por todos, é muito mais prestigiado na sua localidade que qualquer ministro do STF, pois são as suas decisões que influem diretamente no cotidiano daquela comunidade).

Ainda que possa parecer absurdo, a inexistência de qualquer hierarquia entre os Juízes vem capitulada no art. 6º da Lei nº 8.906/94, exatamente o Estatuto da Advocacia, quando assevera que «não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos», havendo que se ponderar que tal dispositivo não se dirige apenas à inexistência de subordinação e hierarquia dos advogados em relação a juízes e membros do Ministério Público,mas também entre estes, sob pena também da regra primeira acabar desvirtuada." 7

Ainda, no escólio de Gomes da Cruz 8:

"Temos feito várias referências à independência do magistrado, salientando que as garantias constitucionais se voltam para preservar tão fundamental atributo da magistratura. Logo, todo juiz deve agir com independência, até em relaçãoà instância superior, sabido que esta só possui, em relação ao órgão de grau inferior, competência de derrogação. Claro, não se exclui o poder disciplinar, mas não interferindo diretamente na atuação do juiz em matéria processual."

Mais além, em plagas europeias – e há décadas –, o insuperável Gomes Canotilho 9 identificou, no princípio constitucional da independência dos órgãos judiciais (consagrado na Constituição portuguesa de 1976 e inerente a todos os Estados Democráticos de Direito), três corolários: o da independência pessoal(donde a impraticabilidade das nomeações interinas e das transferências, suspensões, aposentações e demissões à margem da lei ou em razão das decisões emanadas), o da independência coletiva (autonomia da judicatura – inclusive orçamentária – em relação aos demais poderes da República) e o da independência funcional. Quanto a essa última, assere que:

"A independência funcional é uma das dimensões tradicionalmente apontadas como constituindo o núcleo duro do princípio da independência. Significa ela que o juiz está apenas submetido à lei – ou melhor, às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas – no exercício da sua função jurisdicional."

Consequentemente, o juiz de 1º grau não está obrigado a acatar teses ou entendimentos de instância superiores, se pessoalmente não os crê conformes às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas (a não ser, no caso brasileiro, em hipóteses cobertas por súmulas vinculantes exaradas pelo Supremo Tribunal Federal, mercê da norma ínsita ao art. 103-A da CRFB). Está, sim, obrigado a acatar o resultado dos arestos que lhe reformam as decisões, nos limites de seus comandos dispositivos concretos. Não mais do que isso. Não se obriga, por exemplo, a reproduzir, em nova sentença,os conceitos, as teses e as convicções perfilhadas pelo relator na fundamentação do voto. Nem a seguir a súmula de jurisprudência dos tribunais aos quais se vincula, se o entendimento ali vazado violenta-lhe a convicção. E, por isso mesmo, andou mal o Conselho Nacional de Justiça ao erigir a "obediência a súmulas" como um requisito objetivo de aferição do "merecimento" do magistrado ao tempo da sua promoção (cfr. art. 93, II e III, da CRFB c.c. art. 5º, d e e, da Resolução CNJ nº 106/10 10).

Nesse sentido, aliás, tem se pronunciado iterativamente o próprio Conselho Nacional de Justiça, excluindo a possibilidade de se recorrer à instância administrativa disciplinar e/ou revisional para "corrigir" ou "punir" os assim chamados "errores in judicando" (i.e., erros de julgamento – que nada mais são que convicções jurídicas derrubadas em superior instância). Veja-se:

"Recurso Administrativo em Revisão Disciplinar. Insurgência contra decisão monocrática que indeferiu pedido de apuração da responsabilidade dos magistrados que atuam em processos judiciais de interesse da requerente e contra o indeferimento de afastamento destes e do desembargador que é parte nos processos na defesa da guarda de seu neto. Recurso não provido. A Revisão Disciplinar não se presta à indagação de quaestionis juris, nem ao ataque do error in judicando do magistrado. A pretensão de incursão em atos judiciais proferidos em juízo constitui matéria que se posta fora do âmbito de competência do CNJ. Essa atuação no plano judicial só se revê através dos meios postos na legislação processual, pela via do recurso judicial cabível, sendo inadequada e incabível a Revisão Disciplinar para essa finalidade" (CNJ, REVDIS 200810000005120 e REP 200810000005118, Rel. Cons. Rui Stoco, 65ª Sessão, j. 24.06.08, in DJU 05.08.2008 – g.n.).

"Recurso Administrativo em Reclamação Disciplinar. Arquivamento. Atos judiciais passíveis de recurso. Inexistência de infração funcional. 1) O CNJ não é instância de revisão de decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário no exercício da típica atividade jurisdicional. 2) Os fatos trazidos aos autos pelo reclamante não apresentam cometimento de infração funcional. Recurso a que se nega provimento" (CNJ – RD 391 – Rel. Cons. José Adonis Callou de Araújo Sá, 69ª Sessão, j. 09.09.08, in DJU 26.09.2008 – g.n.).

"Magistrado. Descumprimento de dever funcional. Art. 35, I, da LOMAN. Inexistência. Regular exercício da atividade jurisdicional. Princípio do livre convencimento motivado. Error in judicando. O Juiz tem o dever legal de observar as suas obrigações, no que se inclui ‘cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício’ (LOMAN, art. 35, I). É-lhe assegurado, todavia, o exercício da função com liberdade de convencimento (CPC, art. 131) e independência, de modo a garantir, em última análise, a autonomia e independência do próprio Poder Judiciário (CF, art. 95). Constatado, no caso concreto, que, conquanto se possa considerar equivocada a decisão que condenou terceiro não integrante da relação processual, o ato em questão foi praticado no regular exercício da função e de acordo com a convicção do magistrado sobre a matéria. Não há falar, portanto, em descumprimento de dever funcional e de responsabilização do magistrado. Revisão Disciplinar de que se conhece e que se julga improcedente" (CNJ, RD 200830000000760, rel. Cons. Altino Pedrozo dos Santos, 80ª Sessão, j. 17.03.09, in DJU 06.04.2009 – g.n.)

E – antecipo-me – se é assim no plano administrativo disciplinar, não há como ser diferente no plano jurídico-civil ou jurídico-penal, nem se justifica eticamente que se haja de modo diverso no plano administrativo promocional (i.e., na consideração do "merecimento" do agente público para efeito de promoção ou de percepção de vantagens quaisquer).

Aliás, a própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35/79) prevê, em seu art. 41, que o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, salvo no caso de impropriedade ou excesso de linguagem. In verbis:

"Art. 41. Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir."

E, na mesma alheta, a Loman dispõe, no seu art. 40, que a atividade censória dos tribunais não pode cercear a independência ou malferir a dignidade do magistrado. In verbis:

"Art. 40. A atividade censória de Tribunais e Conselhos é exercida com o resguardo devido à dignidade e à independência do magistrado."

Se tudo isso é verdadeiro no plano judicial e administrativo, entre magistrados dos diversos níveis da carreira da Magistratura e dos tribunais superiores, não pode ser menos verdadeiro em relação a terceiros. Se o magistrado instrui e julga de acordo com a sua convicção, reportando-se à Constituição da República e às leis do país (da maneira como as lê, inclusive em perspectiva sistemática e/ou teleológica), e se assim fundamenta a sua decisão (porque é exatamente aqui – na fundamentação judicial, não na positividade das leis infra constitucionais – onde tem assento, nos Estados Democráticos de Direito, a maior garantia do jurisdicionado contra as possíveis arbitrariedades do próprio Poder Judiciário), não pode ser responsabilizado, seja no campo administrativo, seja no campo cível, seja ainda – e com maior razão – no campo criminal. Pregar o contrário é pregar uma jurisdição covarde, porque a decisão judicial preocupar-se-á primeiramente com a indenidade do próprio prolator e somente depois com a justiça do caso concreto. É pregar, ainda, uma jurisdição tacanha, repetidora de verbetes que não raro se empedram no tempo. É pregar, por fim, uma jurisdição eficientista (mas não eficaz), que se ocupa de decidir mais e mais rapidamente, produzindo números, resultados e relatórios; mas que, ao cabo e ao fim, já não produz justiça social.

Mas é precisamente neste ponto que peca o anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Eis o que diremos na sequência.

III – O Anteprojeto de Código de Processo Civil: Pontos Críticos

Na linha do quanto exposto em tópico anterior, encontram-se desconformidades formais e materiais, na perspectiva das prerrogativas da Magistratura nacional, em raros preceitos do texto sob tramitação legislativa. Nada obstante, ainda que poucas, lá estão presentes. Por isso, será útil repará-las antes de eventual promulgação do diploma. Dois dispositivos do Anteprojeto de Código de Processo Civil (atual Projeto de Lei nº 166/10, do Senado Federal) chamam a atenção, em particular, pela referida desconformidade. São eles:

"Art. 10: O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício."

"Artigo 192: Qualquer das partes ou o Ministério Público poderá representar ao presidente do tribunal de justiça contra o juiz que excedeu os prazos previstos em lei.

§ 1º.

§ 2º

No que diz respeito ao art. 10, impende registrar que, a despeito de suas excelentes intenções (na esteira do art. 5º, LV, da CRFB), termina consumando um retrocesso no plano da aplicação judiciária da norma jurídica, notadamente quando se trata de preceito de ordem pública (de que se invariavelmente se revestem as chamadas "objeções processuais", às quais se reporta o art. 10). É da tradição do processo % em especial no âmbito do processo penal e dos mecanismos processuais de tutela de direitos fundamentais % a parêmia latina "iura novit curia", a significar que o juiz pode aplicar o Direito em conformidade com a configuração factual que se lhe apresenta, desde que nisso não desborde dos limites objetivos e subjetivos da lide (a que Dinamarco denomina princípio da correlação entre a demanda e a sentença); ao desbordar % aí sim % seria imprescindível a imediata dilação adversarial para efeito de contraditório (como se dá, no processo penal, com a chamada "mutatio libelli" % art. 384 do CPP). Com mesma ou maior razão, não há necessidade de se limitar o poder decisório do juiz, quando à mercê de objeções processuais, a um procedimento contraditório prévio. O princípio do contraditório (art. 5º, LV, CRFB) já estará atendido com a inarredável possibilidade de revisão do "decisum", em sede de recurso, caso uma das partes se entenda "surpreendida" ou contrariada com a subsunção jurídica que o magistrado imprimiu a determinado fato ou circunstância (decadência, coisa julgada, litispendência, carência de ação, etc.). Desse modo, obrigar o juiz a abrir contraditório sempre que pretenda decidir com base em normatividade cogente e cognoscível "ex officio"é limitar a extensão do seu poder de direção processual, circunscrevendo-o a limites que hoje não se impõem e que, inexistentes, nem por isso têm suscitado discussões de fulcro constitucional; e, num certo sentido, é comprometer o próprio princípio da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CRFB).

Não bastasse, a própria sistemática do novo CPC parece transigir com a saudável e necessária possibilidade de decisão imediata com base em matéria de ordem pública, sem prejuízo de eventual contraditório diferido. Vejam-se, por exemplo, os casos do art. 241, parágrafo único (quanto às nulidades absolutas, cognoscíveis de ofício), do art. 249, par. único (quanto à decisão de mandar anotar "ex officio" quaisquer intervenções de terceiros), do art. 258, caput (quanto à determinação "ex officio"de produção de quaisquer provas que julgar necessárias para o julgamento da lide), do art. 278, parágrafo único (quanto à substituição das medidas acautelatórias por prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido) e, por fim, do art. 284 (quanto às medidas urgentes de ofício). Ao que se lê nas redações desses preceitos – que sempre preordenam, em alguma medida, «decisão» judicial nos autos –, poderá o magistrado, em qualquer daqueles casos, decidir de ofício (para declarar a nulidade, anotar a intervenção, produzir a prova, substituir ou conceder a medida de urgência, etc.), independentemente de oitiva do "ex adverso". Ou acaso se sustentará que, por força do art. 10, deverá o juiz, em todos esses casos, ouvir antecipadamente a(s) parte(s)? A ser assim, a hermenêutica sacrificaria amiúde a duração razoável do processo. Em alguns casos, o contraditório prévio seria inclusive contraproducente, quando não impeditivo dos efeitos pretendidos (assim, e.g., nas hipóteses do art. 284, 1ª parte – excepcionalidade da urgência – ou do art. 258, caput). Ora, se é dado ao juiz, ao menos nessas situações específicas, decidir "inaudita altera parte", por que não poderá fazê-lo quando estiverem presentes as mesmas razões que aqui justificarão o diferimento do contraditório (a saber, a defesa da ordem pública e/ou a preservação da utilidade e da celeridade do processo)? «Ubi eadem ratio ibi idem ius ».

Está claro que, a depender do caso concreto, poderá o juiz entremear o contraditório, com proporção e utilidade, entre a identificação de objeções processuais incidentes e a sua decisão a respeito. É o que se dá, aliás, com as próprias nulidades absolutas; e, nada obstante, o novo codex autorizará o seu decreto de ofício (art. 241, parágrafo único), aparentemente sem necessidade de prévia manifestação das partes (a não ser, insista-se, que se pretenda aplicar o art. 10 à hipótese do art. 241, parágrafo único; mas, sendo assim, haveremos de aplicá-lo também às hipóteses dos arts. 258 e 284, ainda que isso prejudique a finalidade da norma?). Vê-se, pois, que a melhor sistemática será sempre deixar a critério do magistrado, na direção do processo em cada caso concreto, decidir sobre a necessidade (no aspecto técnico-jurídico, i.e., quanto à constitucionalidade/legalidade de eventual mitigação ou diferimento) e também sobre a conveniência (aspecto político-processual) do contraditório prévio. É, aliás, o que naturalmente decorreria da excelente norma inserta no art. 107, V, quanto à adequação das fases e dos atos processuais às especificações do conflito, de modo a "conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico". Daí porque, ao que nos parece, melhor será eliminar do projeto o seu atual art. 10, a bem da preservação dos poderes de direção do juiz no processo e do seu próprio livre convencimento motivado.

Deve-se, ademais, debelar os preconceitos que ainda existem quanto à figura do contraditório mitigado ou diferido. Fiel às lições do grande Ovídio Baptista 11, é mister reconhecer que a dignidade e a urgência do bem da vida perseguido (i.e., do "direito material") não apenas justifica como muitas vezes impõe um procedimento contraditório diferenciado, sem que isso represente qualquer violência à cláusula constitucional vazada no art. 5º, LV, da CRFB). Desse modo, pode bem o juiz, deparando-se com objeções processuais ou outras matérias de que deva conhecer "ex officio", decidi-las de plano, mercê do princípio do livre convencimento motivado, quando for essa a melhor solução para a preservação da utilidade do processo e/ou para a sua duração razoável (mais: a depender do bem da vida em jogo e das circunstâncias do caso, terá de fazê-lo). E o fará sem prejuízo do contraditório, que todavia será diferido (mas nem por isso mitigado: mesmo no processo do trabalho, mais infenso a incidentes processuais, a parte insatisfeita poderá registrar seus protestos, na audiência ou no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos, com vistas à ulterior impugnação em sede de recurso ordinário 12; e, no processo civil – mesmo neste que agora se anuncia –, haverá sempre a possibilidade dos agravos 13).

Podem-se, ademais, antecipar possíveis gargalos de interpretação com outros preceitos do anteprojeto que reproduzem ou revisitam essas mesmas idéias de «audição prévia e necessária das partes» antes de qualquer ato judicial decisório, mesmo naquilo que o juiz tenha de conhecer de ofício (como, por exemplo, o art. 110, parágrafo único). Entretanto, a bem de uma abordagem sintética e com o propósito de não comprometer o foco da crítica % que deve mesmo privilegiar as questões principais (supra) %, encerramos aqui esta incursão.

No que diz com o novel art. 192 e com a "responsabilidade" disciplinar dos magistrados pelos excessos de prazo, o problema é ainda mais gritante. Como é de sabença geral, o regime disciplinar da Magistratura não pode ser objeto de lei ordinária federal (como deverá ser, se a final aprovado, o PLS 166/10). As normas de conduta da Magistratura nacional e o respectivo regime disciplinar são – e devem ser – objeto do Estatuto da Magistratura, que hoje tem corpo na Lei Complementar nº 35/79 (LOMAN). E, não bastasse a questão do quórum especial (artigo 69 da CRFB), é certo que, para tanto disciplinar, a iniciativa legislativa jamais poderia ser de um senador da República. Haveria de ser do Supremo Tribunal Federal. É o que dita o próprio art. 93, caput, da Constituição Federal:

"Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios […] (g.n.)."

Nessa alheta, está claro que haverão de ser flagrantemente inconstitucionais (= inconstitucionalidade formal, por vícios de espécie e de iniciativa) as normas vazadas no art. 192 do anteprojeto, tencionando regular a responsabilidade disciplinar do magistrado pelo excesso dos prazos legais, inclusive com um arremedo de rito para essa específica finalidade (distribuição ao órgão competente, instauração do procedimento disciplinar sem prévia oitiva do acusado, avocação discricionária dos autos em que se der o atraso para efeito de remessa a substituto legal – o que põe em xeque, teoricamente, a própria garantia do juiz natural 14 –, etc.). Com efeito, os deveres dos magistrados estão atualmente dispostos no art. 35 da LOMAN (sendo certo que o excesso de prazos está contemplado já no inciso segundo, mas com a modulação necessária do advérbio "injustificadamente", que sequer aparece no art. 192 do PLS 166/10). Por sua vez, a responsabilidade disciplinar do juiz pela inobservância desse dever está regulada entre os arts. 40 e 48 da mesma LOMAN, sendo certo que, para o caso em testilha – que importa em "negligência no cumprimento dos deveres do cargo"(desde que os excessos sejam injustificados) –, a lei prevê penas de advertência (nas situações isoladas) e de censura (no caso de reiteração), quando aos juízes de primeiro grau (ut arts. 42, parágrafo único, 43 e 44), sendo discutível a natureza da sanção quando se tratar de juízes de segundo grau (vez que, por um lado, não se justificaria aplicar-lhes pena mais grave que a reservada para juízes de 1º grau; mas, por outro, tampouco seria juridicamente aceitável que estivessem ao abrigo de qualquer responsabilidade disciplinar em semelhantes casos).

Ademais, o rito para a aplicação de sanções disciplinares a magistrados está igualmente esboçado pela lei em vigor, ao menos para os casos mais graves, nos termos de seus arts. 27 c.c. 46 da LOMAN (recepcionada que foi, às sabenças, como lei complementar). Não poderia a lei ordinária federal fazê-lo, ainda que residualmente, para os casos mais singelos, até porque a delegação legislativa, nesse particular, foi feita aos regimentos internos dos tribunais (art. 48). Por conseguinte, não pode ser outra a conclusão, senão a de que a tentativa de regular matéria disciplinar afeta à Magistratura nacional no Anteprojeto de Código de Processo Civil – que perfará lei ordinária federal – não resiste ao mais comezinho exame de constitucionalidade.

Nesse diapasão, e em casos muito semelhantes, pronunciou-se outrora o Excelso Pretório, em variegadas ocasiões (nalgumas, inclusive, por provocação de associações de magistrados, como a Associação dos Magistrados do Brasil e a própria Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho). Vejam-se, por amostragem, as seguintes ementas (de três casos distintos, envolvendo a criação ou o regramento de infrações disciplinares fora do Estatuto da Magistratura, o regramento dos consequentes procedimentos e a competência legalmente delegada aos regimentos internos):

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO Nº 8, DE 25.09.01, DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 20ª REGIÃO. SENTENÇA ANULADA PELO TRT. NOVA DECISÃO A QUO QUE REPRODUZ OS MESMOS FUNDAMENTOS QUE MOTIVARAM A ANULAÇÃO DA SENTENÇA ANTERIOR. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DO TRIBUNAL. MATÉRIA RELATIVA AOS DEVERES FUNCIONAIS DO JUIZ. ESTATUTO DA MAGISTRATURA. ART. 93, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. A decisão do Tribunal que dá provimento ao recurso para anular a decisão impugnada não substitui o ato recorrido, mas se restringe a cassá-lo, por ilegalidade, após reconhecer a existência de vício de atividade ou errorin procedendo. 2. Se, por um lado, o magistrado é livre para reapreciar o mérito da causa, podendo, até mesmo, chegar a veredicto coincidente àquele emitido anteriormente (momento em que se estará dando plena aplicabilidade ao princípio da independência do magistrado na apreciação da lide), por outro, de acordo com sistemática processual vigente, a ele é vedado alterar, modificar ou anular decisões tomadas pelo órgão superior por lhe faltar competência funcional para tanto. A ele cabe cumprir a decisão da Corte ad quem, sob pena de ofensa à sistemática constitucional da repartição de competência dos órgãos do Poder Judiciário. Fenômeno da preclusão consumativa pro iudicato. 3. Longe de configurar uma mera explicitação ou uma recomendação reforçativa da obrigação do magistrado de obediência às disposições legais, recortou o ato impugnado determinada conduta do universo das ações que traduzem violação àquele dever, atribuindo a esta autônoma infração grave e exclusiva valoração negativa que se destaca do comando genérico do dever de respeito à lei, dirigido a todos os juízes. 4. Ao criar, mediante Provimento, infração nova e destacada, com conseqüências obviamente disciplinares, incorreu a Corte requerida em inconstitucionalidade formal, tendo em vista o disposto no art. 93, caput da Carta Magna. 5. Ação direta cujo pedido se julga procedente. 15"

"PROVIMENTO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE PROÍBE OS JUÍZES DE SE AUSENTAREM DAS COMARCAS, SOB PENA DE PERDA DE SUBSÍDIOS: MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DO PROVIMENTO IMPUGNADO. O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente a ação e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º do Provimento nº 001, de 31 de julho de 2003, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. 16"

"CONSTITUCIONAL. MAGISTRADO: PENAS DISCIPLINARES. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL. C.F., art. 93, X, art. 96, I, a. Lei Complementar nº 35, de 1979 – LOMAN – arts. 40, 42, parágrafo único, 46 e 48. I. Aos Tribunais compete, privativamente, elaborar seus regimentos internos, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. C.F., art. 96, I, a. A competência e o funcionamento do Conselho Superior da Magistratura devem ser estabelecidas pelo Tribunal de Justiça, em regimento interno. II. As penas de advertência e de censura são aplicáveis aos juízes de 1º grau, pelo Tribunal, pelo voto da maioria absoluta de seus membros. C.F., art. 93, X. III. – Recepção, pela CF/88, da LOMAN, Lei Orgânica da Magistratura: C.F., art. 93. IV. Os regimentos internos dos Tribunais estabelecerão o procedimento para a apuração de faltas puníveis com advertência ou censura. LOMAN, art. 48. V. Regimento Interno, arts. 37 e 40: inconstitucionais em face do art. 96, I, a, da Constituição Federal (maioria). Voto do Relator: empresta-se interpretação conforme a Constituição para estabelecer que citados arts. 37 e 40 dizem respeito apenas às penas de advertência e censura. VI. ADIn não conhecida em parte e, na parte conhecida, julgada procedente. 17"

Não restam dúvidas, pois, de que o texto do art. 192 do Anteprojeto de CPC não pode subsistir.

Revistas essas disposições – nomeadamente a última (art. 192), que se nos afigura a mais perniciosa –, para o restante bastarão, amiúde, algumas singelas adaptações. Vejamos.

Do ponto de vista estritamente hermenêutico – dizendo, pois, menos com as prerrogativas da Magistratura nacional e mais com a própria atividade judicante diuturna do juiz do Trabalho –, o art. 14 do PLS 166/10 deverá causar alguma perplexidade, abalando talvez o próprio edifício jurisprudencial que ao longo dos anos se construiu, na Justiça do Trabalho, em torno do art. 769 da CLT. Por isso mesmo, convirá desde logo adaptá-lo para que, no futuro, sua redação não justifique arroubos de interpretação incoerentes com a sistemática e a principiologia da Consolidação das Leis do Trabalho (ou do diploma legislativo que venha a substituí-la no plano processual), aptos a causar, nos jurisdicionados, polêmica e assombro – e, por essa via, mais demandas em corregedorias.

É que o art. 14 está assim vazado:

"Na ausência de normas que regulem processos penais, eleitorais, administrativos ou trabalhistas, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivamente (g.n.)."

Ditada desta maneira, a norma termina por ignorar o clássico binômio clausular de subsidiariedade que a jurisprudência e a doutrina processual trabalhista construiu a partir do artigo 769 da CLT: para que a norma de direito processual comum (i.e., o Direito Processual Civil, ao menos pela interpretação hoje corrente 18) possa ser aplicada ao processo do trabalho, há que ter omissão (da legislação processual trabalhista) e compatibilidade (entre a norma importada do processo comum e a própria sistemática/principiologia do processo do trabalho). Bem se vê que o artigo 14 ignora, ao menos textualmente, o segundo elemento do binômio (i.e., a compatibilidade). Dir-se-ia que a inferência é óbvia. Mas, se tão óbvia fosse, não constaria expressamente do texto celetário de 1943 ("…exceto naquilo em que for incompatível…").

Mantida nesses termos, a norma parece permitir, por exemplo, que um juiz do Trabalho admita agravo de instrumento contra decisão liquidatária de sentença (art. 494, § 7º, do PLS 166/10 19), já que a Consolidação das Leis do Trabalho hoje é omissa a respeito dos métodos de liquidação sentencial (exceto quanto à liquidação por cálculos, "ex vi"do art. 879, mas sem qualquer referência aos respectivos modos de impugnação). Poder-se-ia, mais, entender que, diante do silêncio da CLT, o "incidente de desconsideração da personalidade jurídica" previsto entre os arts. 62 e 64 do novo CPC seria integralmente aplicável ao processo do trabalho, inclusive quanto ao "prazo comum" de quinze dias (maior que qualquer dos prazos celetários em fase de conhecimento) para que terceiros e pessoas jurídicas manifestem-se previamente e requeiram a produção de provas, até prolação de decisão final, a desafiar agravo de instrumento (art. 65)… Tais exegeses, se levadas a cabo na esfera do processo laboral, representariam odiosos retrocessos (notadamente nas execuções trabalhistas). Isso porque, sem sombra de dúvidas, essas interpretações – que decorreriam da mera omissão da CLT a respeito – estariam em desacordo com a principiologia do processo laboral, notadamente em razão dos princípios da celeridade processual, da concentração dos atos processuais, da oficialidade da execução e da irrecorribilidade das decisões interlocutórias (ut art. 893, § 1º, da CLT). Em outras tantas matérias, dúvidas similares poderiam ser levantadas, especialmente por aqueles que pretendessem advogar já não ser mais a compatibilidade principiológica um daqueles pressupostos de aplicação subsidiária das normas de processo comum ao processo do trabalho (o que significaria dizer, na prática, que o art. 14 do PLS 166/10 viria a derrogar a norma do art. 769 da CLT). Em verdade, nalgumas falas públicas, o próprio presidente da Comissão de Juristas, Ministro Luiz Fux, deixou transparecer tal pretensão, na evidente propósito de auxiliar o operador do Direito Processual do Trabalho, às voltas com um diploma legislativo que caminha para o seu septuagésimo aniversário (já inapto, pois, a atender às demandas da modernidade). Mas o fato é que, sem o indispensável pressuposto da compatibilidade principiológica, a norma do artigo 14 do vindouro CPC trará muito mais confusões do que equacionamentos, ao menos em seara processual laboral.

Para evitar semelhantes dificuldades, que no limite fariam vir abaixo todo o pórtico de intelecção jurisprudencial já erigido sobre o art. 769 consolidado, é de toda conveniência emendar a redação do art. 14 do anteprojeto, para que seja promulgado com o seguinte texto:

"Na ausência de normas que regulem processos penais, eleitorais, administrativos ou trabalhistas, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivamente, exceto naquilo em que forem incompatíveis com os respectivos sistemas ou princípios."

Com isso, já não restarão dúvidas de que, tanto no processo do trabalho como nos demais ramos da processualística contemporânea (processo administrativo, penal, penal militar, eleitoral, etc.), a norma processual civil só poderá ser "importada" quando não conflitar com os princípios e a sistemática própria de cada um daqueles ramos. No caso específico da Justiça do Trabalho, preserva-se a jurisprudência já construída para a matéria (e, com isso, incrementa-se, num primeiro momento, a segurança jurídica, tão importante nos períodos de transição legislativa), sem prejuízo da renovação que decerto advirá dos novos princípios positivados pelo PLS 166 (especialmente em seu art. 107).

Valeria ainda uma última palavra quanto à força das decisões judiciais, em especial nas hipóteses de liminares em tutelas de urgência e de evidência, no âmbito do Anteprojeto de Código de Processual Civil. Em certas passagens, o descumprimento de ordens judiciais é tratado como crime de desobediência (atualmente, o art. 330 do Código Penal 20). Assim ocorre com o art. 503, § 8º, do PLS 166/10 (quanto ao descumprimento de providência mandamental dada em sentença de cumprimento de obrigação de fazer ou de não-fazer), como também no art. 382, caput (quanto ao descumprimento de ordem de exibição de documento). Leiam-se:

"Art. 382. Se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a efetuar a exibição, o juiz ordenar-lhe-á que proceda ao respectivo depósito em cartório ou em outro lugar designado, no prazo de cinco dias, impondo ao requerente que o embolse das despesas que tiver; se o terceiro descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão, requisitando, se necessário, força policial, tudo sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência, pagamento de multa e outras medidas mandamentais, sub-rogatórias, indutivas e coercitivas.

Parágrafo único.

Adiante:

"Art. 503. A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na sentença ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 1º

§ 2º

§ 3º

I – se tornou insuficiente ou excessiva;

II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 4º

§ 5º

§ 6º

§ 7º

§ 8º

Tais normas, vazadas nesses termos, podem comprometer a própria autoridade do julgado. O crime de desobediência é delito de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95, na redação da Lei nº 11.313/06); logo, sequer admite prisão em flagrante, se o acusado assumir o compromisso de comparecer perante a autoridade judiciária penalmente competente (art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95). A depender da hipótese – imagine-se, por exemplo, a recente decisão prolatada pela 2ª Vara do Trabalho de Paulínia no rumoroso caso do "Recanto dos Pássaros", impingindo gastos de grande expressão a multinacionais (Shell e Basf) 21 –, o staff corporativo poderá até mesmo compreender ser "vantajoso" o descumprimento de uma ordem judicial exarada com efeitos imediatos, pois a consequência mais grave da desobediência seria a mera lavratura de um termo circunstanciado contra preposto da empresa (sem considerar a natural dificuldade de individualização de condutas em casos desse jaez). Por outro lado, se o órgão do Ministério Público pretender subsumir a conduta em questão a delito mais grave, poderá encontrar inusitada resistência pelo viés do princípio da estrita legalidade penal ("lex certa et stricta"), já que a lei federal posterior (i.e., o PLS 166/10) terá vinculado tal conduta ao tipo penal do art. 330 do CP, sem ressalvas.

Para evitar semelhantes subterfúgios, importa ressalvar a responsabilidade por crime mais grave, estabelecendo textualmente o caráter subsidiário do crime de desobediência. Observe-se que, ao menos no caso do art. 382, caput, ressalvou-se expressamente o "pagamento de multa e outras medidas mandamentais, sub-rogatórias e coercitivas" (o que permite supor inclusas outras medidas de coerção penal). Já no caso do art. 503, § 8º, sequer isso se fez (conquanto a hipótese, aqui, seja potencialmente mais grave, por envolver "diretamente a saúde, a liberdade ou a vida"). Daí a sugestão de se acrescer à parte final do art. 503, § 8º, a tradicional locução "se o fato não constituir crime mais grave", tantas vezes utilizada pelo Código Penal em vigor (e.g., art.132, art. 163, parágrafo único, II, art. 238, art. 307, art. 314, etc.).

IV – Conclusões

Pelo quanto exposto, impende pontuar, acrescer e concluir como segue.

1. Do ponto de vista das prerrogativas da Magistratura nacional, tal como disciplinadas nos arts. 93 a 95 da Constituição Federal e na Lei Complementar nº 35/79 (LOMAN), os principais cuidados que a redação de um novo Código de Processo Civil deve guardar dizem respeito à preservação da independência funcional do magistrado, tanto perante os órgãos judiciais revisores (excetuada, é claro, a sua própria função revisora, que está igualmente sob a guarida da independência funcional, desde que não se desdobre em constrangimento para que o juiz de 1º grau reproduza teses que não perfilha) como perante órgãos correicionais (inclusive quanto ao tempo concretamente razoável para a distribuição de justiça) e também perante pessoas ou entidades externas (inclusive quanto à sua imunidade pelas decisões prolatadas).

2.Violam a cláusula constitucional da independência judicial quaisquer gestões ou preceitos que priorizem prazos, números e "metas" em detrimento das necessidades instrutórias ou persecutórias concretas de cada causa, a serem aquilatadas primeira e precipuamente pelo seu juiz natural (no 1º ou 2º graus). "Eficientismo" descalibrado sacrifica o conceito mesmo de ordem jurídica justa.

3. Também violam a cláusula constitucional de independência judicial os preceitos legais que vulnerabilizam as imunidades do magistrado, sujeitando-o a sanções de qualquer ordem (criminal, civil ou administrativa) pelo mero exercício consciente de suas convicções jurídicas, ainda quando contrárias à jurisprudência pacificada nos tribunais % o que inclui todos os enunciados de súmulas não-vinculantes % ou aos modelos de gestão adotados pelos vários órgãos de administração judiciária (conselhos e administrações de tribunais). Nesse diapasão, o "excesso dos prazos previstos em lei" não pode ser causa única e isolada para a punição ou para a responsabilização do juiz, notadamente quando tal excesso se justifica pelo exercício de suas convicções quando aos efeitos jurídicos de atos ou fatos jurídicos externos (como, e.g., nas hipóteses de prejudicialidade externa), quando à necessidade de dilação instrutória, quando à extensão do contraditório, etc.

4. Quanto ao mais, porém, e na perspectiva global, registre-se tratar-se de texto muito bem afinado com a processualística contemporânea, consentâneo com o novo perfil da Magistratura nacional (proativa, jusgarantista e conciliatória) e sensível a princípios de direito material e processual intensamente repercutidos pela doutrina de vanguarda, conquanto atualmente ignorados pela letra da legislação processual em vigor. Nessa ensancha, cite-se, por exemplo, a recepção formal (textual ou contextual) do princípio da cooperação processual (arts. 8º e 107, III) 22, do princípio da adequação material dos atos e procedimentos (art. 107, V), do princípio da proporcionalidade % em geral (art. 472, parágrafo único) e aplicado à valoração das provas obtidas por meio ilícito (art. 257, parágrafo único) 23 % e até mesmo do princípio geral da razoabilidade (art. 6º), entre outros. Converge-se mesmo para uma abordagem hermenêutica pós-positivista (art. 108). Por essa ancoragem principiológica tão rica, e somente por isso, a proposta já nos mereceria os melhores encômios.

5. Nesse diapasão, e adstrito aos lindes propostos (âmbito das prerrogativas da Magistratura nacional), recomenda-se a exclusão peremptória do texto do art. 192 do Anteprojeto de Código de Processo Civil (atual PLS 166/10); a exclusão ou, ao menos, a adequação material do texto vazado no art. 192 do anteprojeto, assim como naqueles que reproduzem seu espírito (como, e.g., o art. 110, parágrafo único); e, bem assim, a adequação material dos arts. 14 e 503, § 8º, tudo isso sem qualquer prejuízo à elevada conveniência da aprovação global do texto (notadamente para a Teoria Geral do Processo), uma vez feitos esses reparos.

V – Referências Bibliográficas

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FELICIANO, Guilherme Guimarães. Direito à prova e dignidade humana. São Paulo: LTr, 2008.

FELICIANO, Guilherme Guimarães. PISTORI, Gerson Lacerda. MAIOR, Jorge Luiz Souto. FILHO, Manoel Carlos Toledo. Fênix – por um um novo processo do trabalho: a proposta dos juízes do Trabalho da 15ª Região para a reforma do processo laboral (comentada pelos autores). São Paulo: [s.e.], 2010 (no prelo).

MARINONI, Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. v. I.

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