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É necessário reconhecer que o tempo do consumidor é um bem jurídico essencial

Entrevista com o advogado Marcos Dessaune à Revista Consultor Jurídico


26/09/2022 09h15

Fonte: Revista Consultor Jurídico

Dados do "Anuário da Justiça de 2022" informam que 9,6% dos processos no Brasil estão relacionados ao Direito do Consumidor. São ações que quase sempre tratam de problemas dos cidadãos com fornecedores de serviços como operadoras de telefonia, bancos, concessionárias de água e luz e o comércio em geral.

Problemas que muitas vezes não ganham manchetes, como ocorre com as investigações de rumorosos casos de corrupção ou crimes de sangue, mas têm lugar cativo entre as principais preocupações de milhões de brasileiros. 

Nesse contexto, é comum o cidadão que procura o Poder Judiciário se sentir injustiçado por uma jurisprudência defensiva que resultou em uma "indústria do mero aborrecimento", conceito que determina que lidar com falhas de prestadores de serviços faz parte da vida em sociedade. 

O fenômeno, aliás, foi tratado no livro "A indústria do mero aborrecimento", de Miguel Barreto, que registra que a Emenda Constitucional 45, de 2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, teve um impacto indesejável ao implantar metas de produtividade. Para evitar que os processos se multiplicassem, alguns tribunais passaram a aplicar uma jurisprudência centrada no exame formal rigoroso dos requisitos de admissibilidade dos recursos e na rejeição do mérito das ações, ou na redução dos valores das reparações.

Esse quadro só começou a mudar após o advogado Marcos Dessaune publicar a sua Teoria do Desvio Produtivo, que defende que o tempo do consumidor é um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado e que, por isso, os fornecedores e prestadores de serviço devem indenizar o consumidor pela perda desse item finito e valioso.

A tese consumerista de Dessaune já foi citada em mais de 20 mil acórdãos de tribunais brasileiros, e em 2019 teve início sua aplicação por analogia no Direito Administrativo e no Direito do Trabalho. Mais: todos os tribunais que cuidam de defesa do consumidor, inclusive os federais, já citam a teoria.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Dessaune fala sobre o alcance de sua tese, a possibilidade de sua aplicação no Direito Trabalhista e do uso da Teoria do Desvio Produtivo para melhorar a oferta de serviços. 

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O senhor é o criador da Teoria do Desvio Produtivo, que vem se consolidando cada vez mais na jurisprudência dos tribunais. Quais decisões o senhor considera mais importantes para essa consolidação ao longo do tempo?
Marcos Dessaune — De acordo com a última pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei no site de todos os tribunais estaduais, do DF e federais brasileiros, em 15 de junho de 2021 havia, em números redondos, 20 mil acórdãos citando a expressão exata e inequívoca "desvio produtivo", número que torna praticamente impossível conhecer todas as decisões e destacar algumas delas. Todavia tenho notícia, por exemplo, de que o juiz de Direito Fernando Antônio de Lima, da comarca de Jales (SP), teria prolatado a primeira sentença em âmbito nacional inteiramente fundamentada na Teoria do Desvio Produtivo do consumidor, nos autos do Processo 0005804-43.2014.8.26.0297. De igual modo, o desembargador Fábio Podestá, do TJ-SP, teria relatado a primeira decisão colegiada aplicando a teoria na Apelação Cível 0007852-15.2010.8.26.0038. Também foram marcantes — além de decisivos para o avanço dessa nova jurisprudência — os dois acórdãos proferidos pela 3ª Turma do STJ utilizando a teoria como razão de decidir, acórdãos que foram relatados pela ministra Nancy Andrighi nos recursos especiais 1.737.412/SE  e 1.929.288/TO.  Em 2019, fiquei surpreso quando a teoria também começou a ser aplicada, por analogia, no Direito do Trabalho e no Direito Administrativo pela construção jurisprudencial. Destaco, nessas novas áreas, o acórdão do TRT-17 relatado pela desembargadora Daniele Santa Catarina no RO 0000210-16.2018.5.17.0101, bem como o acórdão do TRF-2 relatado pelo desembargador federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama na Apelação 0068187-66.2015.4.02.5101

ConJur — A teoria não é uma tese acadêmica. Como foi o seu processo de formulação?
Marcos Dessaune — Essa pergunta me remete a uma fala do professor Flávio Tartuce que, numa palestra para a advocacia capixaba, em 2018, contou que minha história lembrava muito a do jurista alemão Hermann Staub — um advogado do interior da Alemanha que, nos idos de 1902, desenvolveu a Teoria da violação Positiva do Contrato. De fato, em 2005, um ano depois de eu iniciar tardiamente meus estudos em Direito, comecei a desenvolver um Código de Atendimento ao Consumidor (CAC), que eu finalizei em 2007 e publiquei em 2009. Ao elaborar o capítulo dedicado aos "danos ao consumidor" nessa obra multidisciplinar, eu percebi, a partir da minha vivência como consumidor, que havia certo problema corriqueiro ocorrendo nas relações de consumo que me incomodava e, por não configurar o dano moral clássico — que era o único que eu conhecia na época —, eu sentia uma vontade genuína de entender.

Portanto, foi em torno de 2005/2006, ao desenvolver o CAC, que eu despretensiosamente identifiquei e descrevi esse fenômeno socioeconômico que se revelaria novo para o Direito, que acabei denominando "desvio produtivo do consumidor". Entre 2007 e 2008, esse tema foi desenvolvido no meu trabalho de conclusão do curso de Direito; entre 2009 e 2011, foi enriquecido e lançado em livro pela Editora Revista dos Tribunais; entre 2012 e 2017, foi aprofundado e publicado em edição especial do autor; e, agora, está sendo lançado  inteiramente revisto, reestruturado e ampliado para outras áreas do Direito.

ConJur — O senhor acredita que o Projeto de Lei 1.954/22, a Lei estadual 5.867/22, do Amazonas, e a consolidação da Teoria do Desvio Produtivo ajudam a melhorar a prestação de serviços no Brasil?
Marcos Dessaune — A resposta a essa pergunta requer uma explicação preliminar, que outrora apresentei em artigo na ConJur. No Brasil, os danos extrapatrimoniais são tradicionalmente chamados de "danos morais". Além disso, numa parte da doutrina e da jurisprudência ainda persiste o antigo entendimento de que o dano moral restringe-se à dor, ao sofrimento, ao abalo psicológico. Ocorre que, na atualidade, o dano moral em sentido amplo, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, conceitua-se como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, aí se inserindo o "tempo de vida" do consumidor. Todavia a realidade judicial revela uma grande dificuldade no reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, o que tem levado à manutenção de uma jurisprudência anacrônica que ficou conhecida no país como a "jurisprudência do mero aborrecimento".

Diante desse quadro, há a crescente necessidade do reconhecimento legal de que o tempo do consumidor é um bem jurídico essencial na sociedade contemporânea como meio para se pôr fim à tal noção já superada do dano moral, que nega o direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação integral dos danos. Em outras palavras, diante da jurisprudência anacrônica, mas persistente, baseada na tese do "mero aborrecimento", a positivação de que o tempo do consumidor é um bem jurídico mostra-se cada dia mais necessária para se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, bem como para se alcançar uma maior tutela do consumidor no Brasil. Logo a condenação (principalmente) dos grandes fornecedores que causam cotidianamente o desvio produtivo do consumidor, em quantias que atendam às funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil, seja com base na minha tese doutrinária, seja com respaldo em uma nova lei nela inspirada, deverá servir de estímulo para o desenvolvimento de uma nova cultura empresarial da qualidade de atendimento ao vulnerável. Afinal, "o consumidor que é bem atendido não precisa ser defendido".

ConJur — O entendimento de que a perda de tempo com a resolução de problemas causados por serviços mal prestados é "mero aborrecimento" ainda é aplicado no Judiciário? O senhor tem estimativas da proporção em que isso ocorre, em comparação com os julgadores que já acatam a Teoria do Desvio Produtivo?
Marcos Dessaune — Embora esse panorama esteja mudando na jurisprudência brasileira com a crescente aplicação da Teoria do Desvio Produtivo, ainda é comum vermos julgados afirmando, expressa ou tacitamente, que a perda de tempo na resolução de problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores representa "mero dissabor ou aborrecimento" normal na vida do consumidor, justamente pela explicação que dei anteriormente. Ou seja, aquele conceito anacrônico de dano moral — de que ele seria sinônimo de dor, sofrimento, abalo psicológico — continua a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro, a ponto de Fernando Noronha afirmar, em 2013, que existe uma "tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais (...) presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali". Entretanto, não tenho dados estatísticos para informar a proporção dos julgados que insistem na tese do "mero aborrecimento", que considero equivocada, e os que já aplicam a tese do desvio produtivo como seu antídoto. O que posso dizer, a partir das quatro pesquisas quantitativas que realizei, é que existe uma crescente citação do "desvio produtivo" na jurisprudência pátria, sendo um epítome desse avanço o cancelamento do Enunciado 75 da súmula de jurisprudência predominante do TJ-RJ,  ocorrido em 2018, que ficara popularmente conhecida como a "súmula do mero aborrecimento".

ConJur — O TST já decidiu que o desvio produtivo pode ser aplicado, por analogia, em processos trabalhistas. Como é a aplicação ampla do conceito nessa esfera do Direito?
Marcos Dessaune — De fato, em 24 de maio do ano passado a ministra Kátia Magalhães Arruda, do TST, proferiu decisão monocrática no AIRR 0001380-97.2018.5.17.0141 em que reconheceu "a transcendência quanto ao tema dano moral — falta de anotação na CTPS", porém negou provimento ao recurso da empresa reclamada. Assim manteve o entendimento do TRT-17 que, nos autos da RT 0001380-97.2018.5.17.0141, havia aplicado a tese consumerista, por analogia, em mais um caso juslaboral. Em razão dessa construção jurisprudencial — que também ocorreu no Direito Administrativo —, eu me vi compelido a aprofundar o estudo do tema durante a pandemia, de modo a incorporá-lo à Teoria do Desvio Produtivo e, assim, apresentá-lo à comunidade acadêmica e jurídica na terceira edição do livro, que está sendo lançada agora.  A conclusão a que cheguei é de que na relação de emprego e na relação de serviço público, nas quais também se identificam espécies de vulnerabilidade no trabalhador-empregado e no cidadão-usuário, a posição de superioridade do empregador e da administração pública, na respectiva relação jurídica, também lhes permite omitir-se ou recusar-se a cumprir voluntária, tempestiva e efetivamente um dever legal ou uma obrigação contratual que lhes cabe, assim ensejando a ocorrência de algum prejuízo para o empregado e para o cidadão-usuário. Com tal comportamento, o empregador e a Administração Pública também levam, respectivamente, o empregado e o cidadão-usuário de serviços públicos a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhes foi imposto, o que resulta nos mesmos prejuízos existenciais já identificados na esfera jurídica do consumidor pela Teoria do Desvio Produtivo.

ConJur — Dados do "Anuário da Justiça de 2022" apontam que litígios envolvendo relações de consumo correspondem a 9% de todos os processos abertos em 2021 no Poder Judiciário, e os processos trabalhistas correspondem a 15% desse montante. É possível avaliar o impacto da Teoria do Desvio Produtivo nesses tipos de demanda? A jurisprudência tende a mudar ainda mais?
Marcos Dessaune — Eu nunca atuei na área trabalhista, portanto não saberia mensurar o impacto prático que a ampliação da teoria terá nesse outro campo do Direito. Mas, tomando por base as demandas de consumo, já sustentei até em artigo na ConJur que, de fato, mostra-se necessária uma redução do volume de processos, que sobrecarregam o Poder Judiciário, tendo geralmente no polo passivo grandes fornecedores litigantes habituais. Porém, isso não deve ser buscado por uma jurisprudência defensiva, mas, sim, pela concretização das funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil nas ações de reparação de danos, de modo a estimular o desenvolvimento de uma nova cultura empresarial da qualidade de atendimento ao consumidor que, quando é bem atendido, não precisa ser defendido — como diz a sabedoria popular.

ConJur — Na tese ampliada publicada recentemente, o senhor também defende a aplicação da teoria no Direito Administrativo. O Estado deve se sujeitar às mesmas exigências que as empresas privadas? Cidadãos e consumidores devem ter as mesmas garantias?
Marcos Dessaune — Antes de tudo, é preciso esclarecer que, nessa ampliação da teoria para o Direito Administrativo, restringi-me a analisar a relação de serviço público uti universi, a qual se instaura entre a administração pública e o cidadão-usuário. Isso porque os serviços públicos uti singuli, por envolverem relação de consumo submetida às disposições do CDC, já estavam abrangidos pela primitiva Teoria do Desvio Produtivo do consumidor. Ao cabo do novo estudo, pude assentar que: 1) a relação de serviço público também possui sujeitos em notória situação de desigualdade, sendo ela, portanto, uma das relações jurídicas de interesse da nova pesquisa; 2) a vulnerabilidade que caracteriza a relação de consumo também identifica a relação de serviço público; 3) o Estado tem o dever jurídico de prestar serviços públicos de modo adequado, seguro, eficiente e tempestivo, cujo descumprimento gera restrições, dificuldades, obstáculos e/ou outros problemas relevantes na vida do cidadão-usuário vulnerável; e 4) o Estado, ao criar os mais diversos problemas no curso das atividades que desempenha com poder de império, tem a possibilidade e a força — ou seja, o poder — de impor o desvio produtivo do cidadão-usuário, que é o sujeito em posição de inferioridade na relação de serviço público. Logo, a assimetria de forças existente entre consumidores e fornecedores e entre cidadãos e o Estado exige que se garanta aos sujeitos vulneráveis dessas relações uma proteção especial.

ConJur  — A Teoria do Desvio Produtivo vale para casos em que a coletividade é prejudicada? Se sim, como é possível fazer isso sem ferir a individualização da pena, garantida pela Constituição?
Marcos Dessaune — Vários fornecedores de grande porte, que não raro são litigantes contumazes — como empresas de telefonia e do setor financeiro —, frequentemente se aproveitam da sua posição de superioridade no mercado para transferir para o consumidor o custo temporal, operacional e material de sanar o vício do seu produto ou serviço, o dano decorrente de um defeito nele ou a consequência danosa de uma prática abusiva. Com tal comportamento, essas megaempresas geralmente auferem um lucro extra e injustificado à custa do consumidor vulnerável, que sofre um prejuízo de natureza existencial que tem efeitos individuais e potencial repercussão coletiva. Consequentemente, a reparação dos danos identificados no caso concreto pode ocorrer em tutela individual ou coletiva, sendo a última potencialmente mais eficaz por permitir, na visão dos tribunais, condenações bem mais elevadas, que atendam às funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil.

ConJur — As empresas têm automatizado seus canais de atendimento ao consumidor e, em muitos casos, a inteligência artificial não funciona bem e adia ainda mais a possível resolução de um problema. Esse tipo de avanço está contemplado pela teoria? De que forma?
Marcos Dessaune — A Teoria do Desvio Produtivo se aplica sempre que qualquer fornecedor, ao criar um problema de consumo no mercado e se eximir da sua responsabilidade de saná-lo voluntária, tempestiva e efetivamente, leva o consumidor em estado de carência e situação de vulnerabilidade a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto. Portanto, sem dúvida nenhuma, a teoria abrange os casos em que o problema foi criado por inteligência artificial, bem como quaisquer outros casos gerados por despreparo, desatenção, descaso e/ou má-fé dos próprios fornecedores, independentemente da forma de contato, da motivação e de outras circunstâncias.

ConJur — A questão do arbitramento do dano moral é delicada: como evitar que a precificação da indenização pelo tempo de vida de uma pessoa fique sujeita ao "livre convencimento" do juiz?
Marcos Dessaune — A discricionariedade judicial, permitida pelo princípio do livre convencimento motivado, passou a ser vista como um dos problemas centrais do nosso Direito nos últimos anos. Todavia, de acordo com a doutrina mais atual, o livre convencimento foi superado com a edição do CPC/2015. No capítulo 17 do meu novo livro, apresento uma sugestão para o arbitramento da reparação do dano extrapatrimonial decorrente do desvio produtivo do consumidor, o que, no entanto, seria um assunto extenso para ser discutido em poucas linhas. A jurisprudência, por sua vez, tem trabalhado bastante a quantificação dos danos morais pelo método bifásico, que também se mostra em tese equitativo, uma vez que permite ao julgador avaliar as peculiaridades do caso concreto, assim como os precedentes existentes em relação ao mesmo tema.


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