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Campos dos Goytacazes, Quinta, 18 de Abril de 2024

O STF e a extinção dos mandatos parlamentares

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Por CARLOS ALEXANDRE DE AZEVEDO CAMPOS E JANE REIS GONÇALVES PEREIRA


Jane Reis Gonçalves Pereira[1]

Carlos Alexandre de Azevedo Campos[2]

1.                  Introdução

Depois de quarenta e nove sessões plenárias, que monopolizaram sua agenda por quase quatro meses, o Supremo Tribunal Federal está se aproximando do fim do julgamento da AP 470. Na última sessão, a Corte encerrou a fase de dosimetria das penas para todos os réus condenados. Isso não significa, porém, que as controvérsias acabaram.

Mesmo antes de enfrentar eventuais embargos de declaração, o Supremo ainda deverá se ocupar de algumas outras questões relevantes, como a possível presença de incoerências internas entre as penas e multas aplicadas para diferentes réus condenados pelo(s) mesmo(s) crime(s), o que pode vir a exigir debates sobre a necessidade de ajustes naquelas, bem como a possibilidade ou não de haver prisões imediatas. Contudo, sob o ponto de vista da interpretação constitucional, a questão pendente de maior relevância é, sem dúvida, a da perda automática ou não dos mandatos eletivos dos parlamentares condenados. A palavra final sobre tal desdobramento cabe ao Supremo ou à Câmara? É dessa polêmica que vamos tratar.

O Procurador-geral da República pediu que a perda do mandato eletivo seja aplicada como uma consequência automática da condenação dos deputados federais envolvidos, independentemente da manifestação posterior da Câmara dos Deputados. Alguns ministros da Corte já adiantaram que concordam com a postulação do Ministério Público. De outro lado, o presidente da Câmara, Marcos Maia (PT-RS), afirmou que o futuro dos mandatos dos deputados condenados pertence apenas àquela Casa Legislativa. A disputa institucional está estabelecida e estarão em jogo os mandatos de três parlamentares: João Paulo Cunha (PT-SP); Pedro Henry (PP-MT); Valdemar Costa Neto (PR-SP). A definição poderá alcançar também José Genoíno (PT-SP), que poderia assumir, em janeiro próximo e como suplente, a vaga na Câmara de Carlinhos Almeida, eleito prefeito de São José dos Campos.

No presente texto, sustentamos que a Câmara não possui discricionariedade política quanto à implementação da perda do mandato dos parlamentares criminalmente condenados.

2.                  A dificuldade hermenêutica

No centro do debate, tem-se a necessidade de harmonizar a interpretação de diferentes dispositivos constitucionais, alguns em aparente conflito: os arts. 15, III; 53, §1º e 55, IV, VI, §§2º e 3º.[3] O primeiro diz que a “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”, constitui causa objetiva de perda ou suspensão de direitos políticos. O segundo prescreve que “os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. O terceiro diz que “perderá o mandato o Deputado ou Senador”: “que perder ou tiver suspensos os direitos políticos” (inciso IV) ou “que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado” (inciso VI) – sendo que, no primeiro caso, “a perda [do mandato] será declarada pela Mesa da respectiva Casa, (...) assegurada a ampla defesa” (§3º); enquanto no segundo caso, “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, (...) assegurada ampla defesa”.

Dependendo de como forem combinados esses diferentes dispositivos constitucionais, soluções distintas se apresentarão, aumentando as dificuldades para a formulação de respostas a um problema já recheado de complexidades éticas, políticas e institucionais. Contudo, a solução do problema deve passar pelo exame do alcance da competência do Supremo, estabelecida no art. 53,§ 1º, tendo em vista essas diferentes e possíveis combinações interpretativas.

Para a melhor estruturação de nosso raciocínio, procederemos ao exame em separado das diferentes possibilidades normativas: primeiro, analisaremos o papel do Supremo diante do art. 15, III c/c art. 55, IV e seu §3º; depois, diante do art. 15, III c/c o art. 55, VI e seu §2º. Em ambos os casos, buscaremos justificar uma evolução do sentido dessas regras tendo em conta o novo cenário estabelecido pela EC 35/2001, que modificou substancialmente o art. 53 e o papel do Supremo Tribunal Federal no controle das ações ilícitas perpetradas pelos deputados e senadores. Por fim, investigaremos os precedentes da Corte.

3.                  O art. 15, III c/c art. 55, IV, §3º

O art. 15, III, lido isoladamente, não deixa dúvida de que a perda ou suspensão dos direitos políticos é uma consequência automática da condenação criminal transitada em julgado em face do parlamentar. Trata-se de efeito extrapenal, decorrência imediata da condenação, cujo fundamento é de ordem ética.  Por sua vez, como “o pleno exercício dos direitos políticos” é uma condição de elegibilidade (art. 14, §3º, II) e, portanto, também do exercício do mandato, a perda ou suspensão dos direitos políticos constitui assim hipótese imediata de extinção do mandato eletivo. Trata-se de circunstância incompatível com o exercício do mandato.  A extinção do mandato é consequência necessária da perda ou suspensão dos direitos políticos que, por sua vez, decorre automaticamente da condenação criminal transitada em julgado.

Diante dessa cadeia de implicações lógicas, em se tratando de hipótese de extinção do mandato parlamentar, o ato da Câmara ou do Senado que o reconhecer é meramente declaratório, e não constitutivo, como ocorre nos casos de cassação. Significa dizer: a perda do mandato não está sujeita a um juízo político da Câmara ou do Senado, que devem apenas declarar uma situação jurídica que lhes é anterior: a extinção do mandato parlamentar em decorrência da perda ou da suspensão dos direitos políticos do deputado ou senador.[4] Esse ato declaratório é obrigatório e vinculado – uma mera formalização da extinção do mandato – não cabendo qualquer margem de apreciação discricionária ao órgão político sobre seu mérito.

Essa leitura do art. 15, III e a definição de suas consequências harmonizam-se com o previsto no art. 55, IV, §3º, também da Constituição de 1988. Esses últimos enunciados normativos, isoladamente ou em conjunto com o art. 15, III, deixam claro que a Câmara ou o Senado são apenas encarregados de adotar as providências necessárias para a execução do julgado criminal, transitado em julgado, no que concerne aos seus efeitos extrapenais de perda ou suspensão de direitos políticos e, consequentemente, de extinção do mandato parlamentar: não cabe outra conduta aos órgãos políticos senão a declaração da perda do mandato dos parlamentares condenados.

O texto do §3º, do art. 55, é claro no sentido do papel da Câmara e do Senado em declarar a perda do mandato, não fazendo referência a procedimento de voto secreto e por maioria absoluta para definir o destino do mandato parlamentar, como o faz o § 2º do mesmo artigo.[5] O disposto está em perfeita conformidade com a condição do art. 15, III: se a hipótese é de perda do mandato por carência do pleno exercício dos direitos políticos, então não há mais juízo de valor a ser feito sobre algo já ocorrido – a extinção do mandato parlamentar – faltando apenas o ato declaratório, de reconhecimento oficial, vinculado e obrigatório por parte do órgão político, que inclusive tornará pública a vacância do cargo.

A referência à ampla defesa do parlamentar, assegurada pela parte final do §3º, é para que ele possa contestar a ocorrência ou não do fato objetivo originário que causou a perda de seu mandato: o trânsito em julgado de condenação criminal e a perduração de seus efeitos. Como à Câmara e ao Senado não incumbem juízo político sobre a extinção do mandato, então não pode o parlamentar rediscutir a questão de fundo. Sua defesa possível é somente sobre a ocorrência ou não do trânsito em julgado.

A conclusão acima não é apenas uma exigência hermenêutica da expressão literal ou da sistematicidade desses dispositivos constitucionais, mas também atende aos propósito da reforma constitucional promovida pela EC 35/2001. Como se sabe, antes dessa emenda constitucional, os parlamentares apenas poderiam ser processados se suas respectivas Casas Legislativas autorizassem (antiga redação do art. 53, §1º).  Com a EC 35/2001, esse sistema sofreu importante modificação, ficando os parlamentares, desde sua diplomação, submetidos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, independentemente de prévia licença do Legislativo.

Ocorre que, se esse juízo político prévio do Legislativo foi eliminado pelo constituinte derivado, como manter um juízo político a posteriori para fazer depender a perda do mandato, que é consequência da suspensão dos direitos políticos, da deliberação da maioria das respectivas Casas? Como sujeitar os efeitos das decisões do Supremo – agora livre de quaisquer autorizações para processar e julgar os parlamentares – sobre a perda de mandatos eletivos a julgamentos políticos de conveniência? Da mesma forma que não quis mais o constituinte derivado submeter o início dos processos criminais a apreciação do Congresso, não parece razoável mantê-lo em relação aos efeitos das decisões do Supremo nesses processos. Pensamento diverso tornaria a EC 35/2001 um projeto normativo esvaziado.

Na realidade, a EC 35/2001 não eliminou o poder do Parlamento sobre esses processos.  Ao contrário, estabeleceu limites amplos de controle ao permitir, nos §§ 3º e 4º do art. 53, que, por maioria de votos de seus membros, o órgão suspenda o curso da ação penal, o que é, sem dúvida, um poder elevado de controle sobre a atividade do Supremo na persecução penal em face de parlamentares. Não havendo tal deliberação ou ela sendo negativa, estará exaurido o poder político do Congresso de evitar que as decisões condenatórias do Supremo venham a surtir efeitos sobre o exercício parlamentar de seus membros, não podendo se cogitar de uma segunda oportunidade de juízo político do Congresso.

Aplicando esse raciocínio ao caso da AP 470, fica evidente que cabe à Câmara dos Deputado apenas implementar oficialmente o que é um desdobramento jurídico automático do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, quando transitado em julgado, extinguindo os mandatos eletivos dos políticos condenados. A eficácia da decisão condenatória transitada em julgado do Supremo – suspensão dos direitos políticos e decorrente extinção dos mandatos eletivos – não deve se sujeitar a qualquer avaliação política posterior, mas deve ser aplicada em todos os seus efeitos, de forma vinculada e obrigatória.

4.                  O art. 15, III c/c art. 55, VI, §2º

Uma segunda combinação é a que vincula a aplicação do art. 15, III às regras do §2º do art. 55, e não ao §3º, como exposto acima. O §3º do art. 55, que dispensa expressamente o juízo político do Congresso sobre a perda do mandato parlamentar, seria o procedimento adequado para todas as hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos do art. 15,[6] exceto, e isso em função do disposto no art. 55, VI, para a específica hipótese do inciso III do art. 15: o art. 55, VI trata diretamente da perda do mandato e o art. 15, III da perda ou suspensão dos direitos políticos, mas ambos por decorrência de sentença criminal transitada em julgado. Para esses casos, o único procedimento adequado seria o do §2º porque ele faz remissão expressa ao inciso VI do mesmo artigo, o que alcançaria também o inciso III do art. 15, haja vista a similitude da causa originária. O §2º diz que cabe à Câmara ou ao Senado decidir, por voto secreto e majoritário, sobre a perda do mandato.

Tal interpretação assume que a perda do mandato, por condenação criminal transitada em julgado, não é automática, mas dependente de um juízo político de conveniência do Plenário do órgão legislativo correspondente, até porque a própria perda ou suspensão dos direitos políticos, nas condições estabelecidas pelo art. 15, III, também não seria automática, ficando a depender da deliberação da maioria dos membros da Casa Legislativa. A atuação do Congresso não seria de pura e simples declaração, mas um ato de vontade, que definiria o destino do mandato parlamentar, podendo manter a vigência dos direitos políticos e o exercício do mandato mesmo daqueles que foram condenados por sentença criminal transitada em julgado.

Essa leitura seria uma exigência da própria separação operada pelo constituinte no art. 55, que, não obstante a generalidade do inciso III do art. 15, distinguiu a extinção do mandato pela perda ou suspensão dos direitos políticos (inciso IV) da perda do mandato pela condenação criminal em sentença transitada em julgado (inciso VI), vinculando ainda, para cada hipótese, procedimentos distintos: para o primeiro caso, o procedimento vinculado e declaratório do §3º; para o segundo, o juízo político e constitutivo do §2º. A solução seria então um corte restritivo sobre a generalidade do inciso III do art. 15, de forma a acomodá-lo a especialidade das hipóteses do art. 55. Nas palavras de Moreira Alves:

(...) sem retirar a eficácia de qualquer das normas em choque (...), o problema se resolve excepcionando-se da abrangência da generalidade do artigo 15, III, os parlamentares referidos no artigo 55, para os quais, enquanto no exercício do mandato, a condenação criminal por si só, e ainda quando transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos, só ocorrendo tal se a perda do mandato vier a ser decretada pela Casa a que ele pertencer, sendo que a suspensão de direitos políticos por outra causa, que não como consequência da condenação criminal transitada em julgado, é a hipótese em que se aplica o disposto no artigo 55, IV e parágrafo 3º.[7]

De acordo com essa construção, caberia à Câmara dos Deputados a palavra final sobre o destino dos mandatos dos parlamentares condenados. Ocorre que, essa interpretação não se harmoniza com o fundamento do art. 15, III e de suas consequências, nem tampouco é adequada ao panorama normativo estabelecido pela EC 35/2001. Não nos parece que casos dessa espécie possam ser resolvidos com socorro apenas às técnicas ortodoxas de solução de antinomias jurídicas, do velho esquema hermenêutico lógico-formal, que ignora todas as condicionantes substanciais envolvidas.[8] A referida interpretação desconsidera o fato de que condenações da espécie são impedimentos éticos e práticos para o exercício da vida política.

A leitura desenvolvida pelo então Ministro Moreira Alves até poderia ser adequada ao cenário em que o Supremo carecia de independência para processar e julgar os parlamentares, uma vez que a antiga redação do art. 53, §1º (antes da EC 35/2001) condicionava a abertura de processo à licença prévia da respectiva Casa Legislativa.  Assim, se o parlamentar apenas podia ser processado se autorizado pelo Congresso, então poderia ser arguido que os efeitos desse julgado sobre o mandato parlamentar, por consectário lógico, também dependeria da apreciação do Congresso – a falta de independência e de autonomia decisória do Supremo se estendia desde a instauração do processo penal até a plena execução da decisão condenatória.

Contudo, as coisas mudam profundamente com a EC 35/2001 – que promoveu uma grande alteração nos poderes do Judiciário no que se refere aos ilícitos perpetrados pelos parlamentares. O sistema de controle mudou, e isso porque mudou o propósito da Constituição em relação a esse controle: mais independência para o Supremo – maior controle sobre os ilícitos praticados pelos parlamentares.

Ganhos e perdas de independência e autonomia institucional fizeram parte da reforma constitucional operada pela EC 35/2001 e isso deve ser observado na interpretação daqueles enunciados normativos que não sofreram alteração textual, mas que integram o sistema normativo. A manutenção da interpretação que confere discricionariedade ao Congresso para negar a perda do mandato eletivo, a despeito da condenação criminal transitada em julgada em face do parlamentar, seria contraditória em relação ao conjunto de mudanças promovidas pela EC 35/2001, tornando o novo sistema ilógico e pragmaticamente conflitivo.

5.                  Os precedentes do Supremo Tribunal Federal

O tema ora discutido é algo ainda à espera de uma construção jurisprudencial sólida pelo Supremo Tribunal Federal, até mesmo pela escassez de casos julgados, tendo em vista ser relativamente recente a mudança constitucional (EC 35/2001) que permitiu deputados e senadores serem processados, independente de autorização do Congresso. Essa condição também era aplicada para os deputados estaduais, por força do art. 27, §1º, da Constituição de 1988. Assim, até a EC 35/2001, em sua grande maioria, os casos julgados envolveram vereadores e prefeitos, com os ministros fazendo referências aos parlamentares federais na fundamentação. Embora apenas mais recentemente a Corte tenha passado a enfrentar o tema, como se verá, algumas conclusões já podem ser extraídas.

No julgado já citado acima,[9] da relatoria de Moreira Alves, o STF enfrentou a questão da autoaplicabilidade e do alcance do art. 15, III, julgando a cassação de diploma de vereador eleito. Em trecho de seu voto, transcrito no tópico anterior, Moreira Alves deixou claro, em comentário periférico, que na hipótese do art. 15, III, deve ser observado o procedimento do §2º do art. 55, cabendo ao Congresso decidir, em último caso, sobre a extinção do mandato parlamentar em razão da perda ou suspensão de direitos políticos por motivo de condenação transitada em julgado. Em atividade no Supremo até os dias de hoje, o ministro Celso de Mello concordou com o relator:

O vínculo de incongruência normativa entre o art. 15, III, e o art. 55, §2º, ambos da Constituição, ressaltado no debate desta causa, subsume-se, no caso, ao conceito teórico das antinomias solúveis ou aparentes, na medida em que a alegada situação de antagonismo é facilmente dirimível pela aplicação do critério da especialidade, resolvendo-se o aparente conflito, desse modo – e tal como acentuado pelo Relator – em favor da própria independência do exercício, pelo parlamentar federal, de seu ofício legislativo. É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só poderá ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa legislativa.

A referida doutrina foi, em momento posterior, adotada em voto do ex-ministro Nelson Jobim, julgando, dessa feita, caso de perda de mandato de prefeito.[10] Jobim, citando Moreira Alves, deixou claro que, no caso dos parlamentares federais, a perda do mandato, em função do art. 15, III, deve observar as regras do §2º do art. 55, de forma que “a Constituição outorga ao Parlamento [nesses casos] a possibilidade da emissão de um juízo político de conveniência sobre a perda do mandato”. Para o ex-ministro, “a rigor, a condenação criminal, transitada em julgado, não causará a suspensão do direito políticos (sic)”, pois isso depende de uma decisão da Casa Parlamentar respectiva e não da decisão condenatória do Supremo.

Ainda em atividade no Supremo, Marco Aurélio se opôs ao raciocínio de Nelson Jobim:

Estou procurando conferir à Carta da República interpretação que se coadune com o Estado Democrático de Direito. O que digo é que, enquanto a sentença estiver produzindo efeitos, a hipótese não é a do inciso VI, mas a do inciso IV, e basta a declaração da Mesa da Câmara. (...) se se tem uma sentença criminal transitada em julgado, produzindo efeitos, automaticamente qual o fenômeno que ocorre? Foi esta Corte que assim proclamou: o fenômeno é a suspensão dos direitos políticos, e, aí, temos a incidência não do §2º do artigo 55, mas do §3º, competindo à Mesa simplesmente declarar a perda do mandato como uma consequência automática, natural da decisão transitada em julgado.

Por sua vez, já sob a égide do sistema estabelecido pela EC 35/2001, portanto, sob o renovado ambiente de fortalecimento do controle das atividades dos parlamentares, o Supremo Tribunal Federal enfrentou caso envolvendo a extinção de mandato de parlamentar federal em função da suspensão de direitos políticos por decorrência de decisão condenatória transitada em julgado. O relator, Sepúlveda Pertence, sempre manifestou incômodo com as premissas teóricas de Moreira Alves sobre o tema e, nessa oportunidade, as atacou frontalmente. O julgamento data de 29/06/2006.[11]

Pertence distinguiu hipóteses de “cassação” de hipóteses de “extinção” de mandato, afirmando que, nos casos de extinção, a providência da Câmara deve ser meramente declaratória (art. 55, §3º), enquanto nos casos de cassação, o ato será constitutivo, de caráter político (art. 55, §2º). Para ele, a perda de direitos políticos, ainda que em decorrência de condenação transitada em julgado (art. 15, III), é hipótese de extinção do mandato, requerendo apenas sua declaração pelo Congresso (art. 55, §3º). Sendo meramente declaratório, o ato do Congresso que reconhece a extinção do mandato é vinculado e obrigatório – o Congresso deve meramente formalizar a condição da extinção do mandato, decorrência automática da perda dos direitos políticos que, por sua vez, é consequência do trânsito em julgado da sentença condenatória. Dessa forma, o art. 15, III, para Pertence, está ligado ao procedimento do §3º do art. 55: a palavra final é do Supremo Tribunal Federal.

Mesmo depois de voto-vista, o ministro Ricardo Lewandowski não se opôs à opinião de Pertence, ao menos não explicitamente. Marco Aurélio discordou do resultado a que chegou Pertence, mas por motivos atrelados aos fatos do processo, não à interpretação do art. 15, III c/c art. 55, §3º que, aliás, foi a mesma que ele havia exposto no RE 225.019, conforme trecho acima transcrito.

Este último julgado consiste, inquestionavelmente, no precedente mais próximo do que será debatido na AP 470 acerca de qual instituição – a Câmara dos Deputados ou o Supremo Tribunal Federal – deverá selar o destino dos mandatos eletivos dos deputados federais condenados, após o trânsito em julgado das condenações. É possível que Celso de Mello, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski mantenham suas posições, acima apontadas; mas também é possível que as modifiquem. O recém-nomeado Teori Albino Zavascki, em sede doutrinária, já se manifestou no sentido de caber ao Congresso a palavra final,[12] mas isso foi há mais de quinze anos, antes da EC 35/2001. Na verdade, o que será decidido é algo em aberto; qualquer prognóstico corre sério risco de ser falho. Apenas esperamos, sob o ponto de vista normativo, que os ministros do Supremo não promovam um retrocesso na reforma da EC 35/2001, esvaziando seu projeto de combate à impunidade na vida política.

6.                  Encerramento

É inegável que o texto tem um papel protagonista no processo hermenêutico e que o intérprete não deve ler a Constituição só com o colorido de sua paleta pessoal.  Nesse sentido, a defesa de uma interpretação sistêmica e historicamente inserida não significa, na questão em exame, abraçar um projeto moralmente perfeccionista, que desconsidera os limites da literalidade do dispositivo.  O que ocorre é que essa literalidade também deve ser entendida como parte do todo, para que não se torne uma cláusula setorizada de negação das premissas do sistema.

É consenso que a interpretação constitucional não pode ser implementada num vazio normativo e temporal. No caso em estudo, a sobrevalorização de elementos literais isolados encerra o risco de colocar em colapso o projeto normativo global implementado por meio da EC 35/2001.

Note-se que uma leitura formalista dos dispositivos relativos ao tema já apresentava inconsistências e dificuldades de aplicação no sistema anterior à EC 35/2001. No atual conjunto normativo, porém, afirmar que o Congresso tem discricionariedade para abster-se de extinguir os mandatos dos parlamentares condenados é, em última análise, dizer que o cumprimento da sentença prolatada pelo Supremo é facultativo. Tal solução não se encaixa no sistema de controles recíprocos estabelecido a partir do advento da EC 35/2001, uma vez que abriga  a possibilidade absurda de o Tribunal investir um volume gigantesco de tempo e energia num julgamento cujas consequências jurídicas poderiam ser simplesmente descartadas pelo Poder Legislativo.

Sob o ângulo político e ético, apenas em um panorama de grave instabilidade institucional seria razoável atribuir ao Legislativo a faculdade de se negar a implementar os efeitos de uma decisão judicial.  Ocorre que, foi precisamente o amadurecimento e o regular funcionamento das instituições republicanas que impulsionaram as mudanças estatuídas na EC 35/2001, e essas tiveram por substrato o combate à impunidade e a moralização da política. 

Nesse contexto, apenas uma interpretação sistêmica dos dispositivos em questão pode preservar a normatividade do modelo de controle tal como hoje consagrado na Constituição de 1988.



[1] Mestre (PUC/RJ) e Doutora em Direito Público (UERJ). Professora Adjunta de Direito Constitucional – UERJ. Juíza Federal.

[2] Mestre e Doutorando em Direito Público pela UERJ. Professor – UCAM. Advogado.

[3] Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...)

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. (...)

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: (...)

IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; (...)

VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. (...)

§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. (...)

[4] Cf. BIM, Eduardo Fortunato. A cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar. Sindicabilidade jurisdicional e tipicidade. Revista de Informação Legislativa ano 43, nº 169, Brasília: Senado Federal, jan./mar. 2006, p. 66-67.

[5] Isso não significa adiantar qualquer conclusão sobre o §2º do art. 55, o propósito desta afirmação é apenas deixar muito claro que a redação deste §3º não deixa margem para dúvidas de interpretação.

[6] São as outras hipóteses nos demais incisos do art. 15: (I) - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; (II) - incapacidade civil absoluta; (IV) - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; (V) - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

[7] STF – Pleno, RE 179.502-6/SP, Rel. Min. Moreira Alves, j. 31/05/1995, DJ 08/09/1995

[8] Nesse sentido a crítica de Sepúlveda Pertence: “Mas não é com lógica formal pura, data venia, que se chega à solução constitucional em caso de tal gravidade.”

[9] Cf. nota de rodapé nº 6.

[10] STF – Pleno, RE 225.019/GO, Rel. Nelson Jobim, j. 08/09/1999, DJ 26/11/1999.

[11] STF – Pleno, MS 25.461/DF, Rel. Sepúlveda Pertence, j. 29/06/2006, DJ 22/09/2006.

[12] ZAVASCKI, Teori Albino. Direitos Políticos – Perda, Suspensão e Controle Jurisdicional. Revista de Processo nº 85, São Paulo: RT, jan./mar. 1997, p. 181-189.


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