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Campos dos Goytacazes, Sexta, 19 de Abril de 2024

Relativização da coisa julgada

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Por Felipe Rodrigues Martins


Felipe Rodrigues Martins

A coisa julgada já foi estudada e discutida por muito tempo, e no decorrer dos anos tratou-se de suas características, conteúdo e efeitos. Apesar deexistir para conferir segurança, estabilidade e paz nas relações jurídicas, houve casos em que a sua imutabilidade foi questionada por alguns estudiosos, principalmente no caso de se deparar com situações em que a decisão transitada em julgado fere de forma frontal ou indireta a Constituição Federal.

Este tema apensar de não ser de tão recente debate, considerando a pachorra na evolução do Direito, serve para revisitar a tensão que pode existir entre princípios ou valores; neste caso a justiça e segurança jurídica.

Um exemplo que já foi muito utilizado é o exame de DNA - que foi desenvolvido há pouco mais de 25 anos - e as paternidades que foram conferidas por intermédio de outras provas que não este método científico.

Sem adentrar às minúcias técnicas do instituto, importante frisar as vozes que se levantaram a favor e contra a relativização da coisa julgada.

É possível resumir os argumentos da doutrina relativista em apenas uma frase do professor Cândido Rangel Dinamarco: “Não é legítimo se eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.”

Sublinhe-se que esta corrente não pretende a aniquilação da coisa julgada, mas apenas uma relativização, pretendendo que o valor justiça se sobreponha ao valor segurança jurídica. E para esta doutrina o valor justiça baseia-se em certo modelo de jusnaturalismo, no qual se considera que a lei se funda em preceitos morais ou éticos, que lhe são anteriores. Dessa forma, a moral serviria de base para o direito positivo, não podendo a norma jurídica desviar dessa moral, sob pena de não vir a ser considerada uma regra válida.

Sendo a justiça anterior e superior ao ordenamento jurídico estruturado, a res judicata, jamais será um instituto de maior importância do que a lei e os princípios constitucionais, podendo ser desfeita até mesmo em caso de contrariedade à norma infraconstitucional. Se a própria lei geral e abstrata, depois de obedecido o devido processo legal, com toda a burocracia inerente ao processo legislativo, que foi criada para tentar garantir que o seu resultado não contrarie a Norma Maior e consequentemente o Estado Democrático de Direito, não está imune ao controle de constitucionalidade, com muito mais razão, a lei no caso concreto, qual seja, a sentença passada em julgado não estará. Alguns entendem que se a lei no caso concreto, fere os princípios e normas do ordenamento jurídico brasileiro este ato é inexistente, apesar de existir a corrente defendendo que os motivos para a relativização residem no plano da validade.

Notadamente no exemplo dado do exame de DNA esta linha de pensamento entende que não se pode acobertar com o manto da coisa julgada ações nas quais não foram exauridos todos os meios de prova, inclusive científicos, seja por falta de condições das partes interessadas, por desídia dos advogados, por inércia do Estado-Juiz etc., e os formalismos do processo não devem anular direitos e garantias fundamentais do homem.

No Recurso Especial 226.436/PR, a questão da relativização da coisa julgada permeou o julgamento unânime. O Ministro relator Sálvio de Figueiredo Teixeira[1] alegou que

 

“nessas circunstâncias, descabe cristalizar como coisa julgada, a inexistência do estado de filiação, pois restou verificado sim, a impossibilidade de formação de um juízo de certeza, cuja negligência probatória não pode ser debitada ao investigante, como também não pode ser debitado ao investigado este mesmo selo da presunção absoluta e imutável de veracidade sentencial, quando neste mesmo processo deixou de ser pesquisada a prova genética da filiação. E desimporta tenha sido a falta de recursos financeiros, ou porque ainda fosse desconhecida ou inacessível a perícia dos marcadores genéticos do sistema de DNA, hoje já banalizada por um sem-número de laboratórios e sacralizada pelos pretórios brasileiros".[2]

 

Noutra ponta cabe à doutrina “antirelativizadora” refutar os argumentos até agora expostos, que confere maior valor ao princípio da segurança jurídica por ser de igual tônus constitucional, e como tal deve ser rigorosamente obedecido. Esta corrente assegura ainda que Direito e segurança jurídica só existem enquanto coexistem. E não é legítimo apregoar menor valor à segurança jurídica do que outros princípios também consagrados pelo ordenamento jurídico.

Na ponderação e valores entre a justiça e segurança jurídica não há garantia alguma de que uma nova interpretação proporcione mais justiça para as partes, visto que o conceito de justiça e equidade é carregado de indeterminação e subjetividade, que varia de acordo com a religião, cultura, condições financeiras, e o meio social no qual a pessoa está inserta.

Segundo esta linha de pensamento a justiça é um valor, o Estado Democrático de Direito brasileiro fez opção por ele; mas por um justo possível, como padrão de segurança jurídica com a coisa julgada, o “justo absoluto” ou o “Direito justo” como cita José Algusto Delgado é utopia.

Além disso, o ordenamento jurídico tentou chegar próximo da justiça utópica referida acima, visto que o artigo 485 do Código de Processo Civil prevê casos em que a sentença passada em julgado poderá ser rescindida.

O juízo pessoal de injustiça de uma sentença não faz com que ela perca a sua validade. É válida por que produzida pelo órgão soberano legitimado, devendo incidir infalivelmente e produzindo efeitos.

O ordenamento jurídico fez a opção política da segurança jurídica em detrimento da “justiça”, visto que sem a certeza da impositividade da vontade do Estado, não há Direito, nem bom/justo, nem mau/injusto.

A questão suscitada pelos “relativistas” no que tange a flexibilização da res judicata em caso de investigação de paternidade realizada à época em que não existia o DNA não fugiu da atenção dos cientistas.

José Carlos Barbosa Moreira[3] cita um caso prático em que o dilema da flexibilização foi trazido à baila. Trata-se do R. Esp. nº 300.084. É possível reparar que neste caso o Tribunal não declarou “nula” a sentença rescindenda, nem criou um inovador meio de deflagrar o reexame da matéria. Mas sim de forma geniosa conseguiu adaptar a espécie na lei processual, através da flexibilização, da expressão “documento novo”, harmonizando a exigência de justiça com o respeito ao ordenamento positivo. 

Nesta senda, conclui-se que, ainda neste caso tão emblemático o principio da segurança jurídica não foi alijado. Até mesmo a maior arma da doutrina “flexibilizadora” caiu por terra com o julgamento deste caso.

A injustiça só é tolerável quando é necessária para evitar uma justiça ainda maior. “O julgador passa a ser Deus, com lastro numa presunção metafísica, tornando-se um magistrado onisciente e onipresente, sob o manto protetor do ideal do justo”. A validade de uma norma, geral ou abstrata, individual e concreta não passa por questões éticas e morais. E considerando que o julgador singular, irá julgar com base no ele acha justo, o princípio da motivação das decisões estaria prejudicado.

Nem sempre foi esse o entendimento dos Tribunais Superiores. Essa técnica de hermenêutica já deixou de ser observada pelo STJ. No Recurso Especial nº 107.248 cujo relator foi o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o entendimento foi no sentido de que a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada.”[4]

Diante do que foi exposto, há que atentar para fato de que quando se trata de verdade fundante de um sistema de um conhecimento, nenhum princípio pode ser considerado superior ao outro, abstratamente considerados. A ponderação de valores é feita diante de um caso concreto, principalmente quando se trata de justiça e segurança jurídica, princípios que estão em permanente tensão no mundo jurídico.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Código de Processo Civil. São Paulo: Riddel. 2012;

BRASIL. Constituição da República Federativa do. Brasil. São Paulo: RT, 2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 226.346. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Brasília. 04 de fevereiro de 2002. Disponível em: http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199900714989&pv=010000000000&tp=51;

DIDIER JUNIOR, Fredie. Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Jus Podivm. 2ª Ed.2006;

DINAMARCO, Candido Rangel. Relativizar a Coisa Julgada Material. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/Revista%20PGE%2055-56.pdf;

GIROTTO, Luiz Eduardo de Castilho. Coisa Julgada em Matéria Tributária. 2ª ed. São Paulo: Juruá. 2006.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010;

SIQUEIRA, Pedro Eduardo Pinheiro Antunes de. A Coisa Julgada Inconstitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2006;



[1]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 226.346. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Brasília. 04 de fevereiro de 2002. Disponível em: http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199900714989&pv=010000000000&tp=51

[2]MADALENO, Rolf. A Coisa Julgada na Investigação de Paternidade. Apud. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 226.346. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Brasília. 04 de fevereiro de 2002.Disponívelem: http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199900714989&pv=010000000000&tp=51

[3]MOREIRA, José Carlos Barbosa Considerações Sobre a Chamada “Relativização” da Coisa Julgada Material. In DIDIER JUNIOR, Fredie. Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Jus Podivm. 2ª Ed.2006..

[4] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 107.248. Disponível em: http:// www.stj.jus.br.


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